As técnicas de edição são requintadas para um vídeo pessoal. O roteiro descreve a jornada de um “herói” que representa a única salvação contra os “inimigos do Brasil” e a “esquerda sanguinária e corrupta”, cuja sina, junto com a imprensa mentirosa, é destruir a pátria. Mas, conclama, a “força da família brasileira” vai mostrar em 15 de março próximo que o presidente “trabalhador, incansável, cristão, patriota, capaz, justo e incorruptível” tem os braços do povo para ajudá-lo nessa batalha.

Embalada por um sopro do hino nacional brasileiro, a narrativa exibe imagens do candidato Jair Bolsonaro esfaqueado, que “quase morreu por nós” na luta contra os “poderosos”. De repente, o climax orquestrado com melodia triunfante dá ritmo a uma convocação quase irrecusável de estarmos (todos?) juntos nesse melodrama ufanista de apoio à patria e aos valores nacionalistas em verde e amarelo.

Um segundo “episódio” (ou seria o primeiro?), também disparado pelo celular do Presidente da República no WhatsApp, traz imagens de multidões com as cores pátrias, em eventos “cívicos” comuns desde 2013, alinhados a uma narração empostada e típica de peças institucionais clássicas, enaltecendo o presidente e edificando o sofrimento dele na luta pelo Brasil. Ao fundo, o hino nacional assume a jovialidade de uma guitarra em solo que se intensifica com a base instrumental à medida que a narrativa ganha ênfase.

São dois vídeos de propaganda cercados de polêmica pela chamada “oficial” do presidente a uma manisfestação pública em apoio a si mesmo, em um momento no qual as instituições democráticas vêm perdendo respeito e são acusadas de “travar” o desenvolvimento do país. Mas há neles muito mais. Quando usados por grupos governistas e de ultradireita, servem como alavanca para a institucionalização de um movimento de risco à representação política e às organizações sociais que sustentam os direitos e as garantias individuais.

Foi a jornalista Vera Magalhães quem primeiro divulgou os vídeos no site BR Político, terça-feira de Carnaval, 25 de fevereiro. No texto assinado por ela não há qualquer menção de que Bolsonaro fazia uma convocação contra o Congresso Nacional. Aos movimentos de direita sim.

O presidente Jair Bolsonaro está disparando de seu celular pessoal um vídeo em tom dramático que mostra a facada que sofreu em 2018 em Juiz de Fora para dizer que ele “quase morreu” para defender o País e agora precisa que as pessoas vão às ruas no dia 15 de março para defendê-lo. O ato do dia 15 está sendo convocado por movimentos de direita em defesa do governo e contra o Congresso Nacional.

Vera Magalhães 25/02

Por sua vez, Jair Bolsonaro se comportou como de costume. Atacou a jornalista e a imprensa de modo geral. Em uma de suas lives, dois dias depois da publicação do BR Político, alegou que os vídeos não se referiam à manifestação de agora, mas a de 2015 contra a então presidenta Dilma Rousseff e pelo impeachment, que se efetivou no ano seguinte. De acordo com Bolsonaro, em um discurso confuso e desarticulado, parte significativa da imprensa está jogando contra o governo e por consequência contra o país, como resultado de sua decisão de reduzir o financiamento de propaganda na mídia. Financiamento que parece não preocupar veículos de direita autoproclamados independentes (vídeo abaixo), uma vez que a grana vem de diferentes “rubricas”.

Ela queria dar um furo de reportagem com aquele meu vídeo convocando o pessoal para 15 de março, mas no seu afã de dar o furo rapidamente, ela esqueceu de ver a data que era 2015. Se bem que dá para ver, perceber um pouquinho no meu semblante, que estou um pouco mais jovem. Mais um trabalho porco que a mídia toda repercutiu.

Bolsonaro 27/02
Folha Política, um dos veículos que surgiram nessa onda da propaganda de direita, reproduz falsa justificativa do presidente Jair Bolsonaro sobre vídeo denunciado pela imprensa

Desafiada por Bolsonaro e covardemente atacada por bolsonaristas, a jornalista postou novamente em sua conta no Twitter os dois vídeos (abaixo). Não há como terem sido produzidos em 2015, uma vez que retratam a facada de 2018 e falam de Bolsonaro como presidente. Mas a questão nem é esta, visto que as evidências são óbvias. As manifestações de 15 de março são resultado de uma articulação gerada por uma declaração, supostamente vazada numa transmissão ao vivo do Palácio do Planaldo, em que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, chama o Congresso Nacional de chantagista.

Em sua conta particular no Twitter, a jornalista Vera Magalhães postou novamente os vídeos que circulam por grupos privados no WhatsApp e nos quais Bolsonaro convoca para ato em 15 de março

Como sustenta Vera Magalhães, o requinte de produção dos vídeos disparados pelo presidente e a rapidez com que os grupos de direita se articularam dão à declaração do general Heleno uma espécie de ponto de partida para um manifesto contra as instituições democráticas em nome de uma suposta governabilidade. Interpretação compartilhada pela repórter, escritora e documentarista Eliane Brum, em sua coluna no El País. O título do artigo publicado por ela em 26 de fevereiro é contundente, sintético e conclusivo: O golpe de Bolsonaro está em curso.

Não é a primeira vez que escrevo isso, mas insisto: já passou da hora de as instituições colocarem freios não só na língua e no zap do presidente, mas em suas ações. Sob pena de que, quando decidirem fazê-lo, tenham perdido essas condições legais e políticas. 

Vera Magalhães 26/02

Têm sido frequentes, como se sabe, as provocações do presidente na relação com a imprensa. Gestos inadequados, respostas atravessadas, interrupções de entrevistas, xingamentos, alusões misóginas a jornalistas, o cardápio é farto. O caso mais recente soma-se, entretanto, a indícios que vão muito além do polêmico vídeo. A convocação do presidente soa como mais uma tentativa de superar o isolamento em relação ao mercado e à mídia. Bolsonaro enfrenta o desafio de responder aos mais diferentes setores sobre suas ações, não só declarações, e efetivamente passa a medir forças com instituições com as quais precisa dialogar.

Sozinho, Bolsonaro foi responsável por 114 casos de descredibilização da imprensa, por meio de ataques a veículos de comunicação e a profissionais, e outros sete casos de agressões verbais e ameaças diretas a jornalistas, totalizando 121 casos, o que corresponde a 58,17% do total.

FENAJ 2019

Ilude-se quem acha que este é um fenômeno isolado e que as desavenças do presidente com jornalistas são puramente reflexo de um comportamento de tipo específico. Os ataques de Bolsonaro à Vera Magalhães, por exemplo, têm muito pouco ou quase nada de pessoal. Por trás da máscara do “herói”, da jornada do “mito”, institui-se, pouco a pouco e em velocidade surpreendente, a ideia de que a democracia não dá mais conta do que precisa ser feito nem representa mais a promessa de bem estar. E o enfraquecimento dos regimes democráticos é o enfraquecimento do jornalismo como possibilidade de ampliar nossa percepção da realidade social.

Pesquisas de opinião pública podem não ser, como dizia o sociólogo francês Pierre Bourdieu, um estrato honesto do que pensam as pessoas em coletivo. Mas não há como negar que a leitura sobre nossa realidade tem sido muito influenciada por elas. Em relação à democracia, entrevistas promovidas por diferentes estudos, tanto de mercado quanto acadêmicos, mostram o que pensadores contemporâneos têm alertado: a confiança em direitos democráticos está em declínio no mundo inteiro. Em síntese, as instituições responsáveis pelas mediações entre a sociedade e suas estruturas de poder, imprensa aí incluída, não parecem mais representativas.

Se considerados os 34 países pesquisados pela Pew Research Center, uma organização internacional apartidária que faz levantamentos sobre diferentes temas, mais da metade dos cerca de 38,5 mil entrevistados no relatório sobre direitos democráticos, publicado em 27 de fevereiro, se mostra “frustrada” com o “funcionamento da democracia” (gráfico abaixo em inglês). E a insatisfação se dá, em geral, pela desconfiança na elite política. A rigor, dizem os entrevistados em maior ou menor grau dependendo do país, os sistemas de organização política e suas formas de representatividade estão minando a confiança nos processos democráticos.

Existe a descrença de que os representantes eleitos estejam sintonizados com os anseios populares e o Estado, por consequência, não é percebido mais como instituição que atua em benefício de todos. Mas a questão elementar na pesquisa é que, ainda assim, o voto é visto como a melhor maneira de mostrar aos governos o que a população pensa sobre suas políticas e decisões. Os dados apresentados pela Pew Research Center são organizados pela mediana estatística, não pela média. Quer dizer que os 52% de insatisfação com a democracia referem-se a uma resposta que corresponde a este valor em mais da metade dos países pesquisados e não a um percentual médio de opiniões.

Os valores democráticos também têm pesos diferentes dependendo do país. Mas parece consenso que um judiciário justo é o mais essencial para que tais valores sejam garantidos. E esta é uma questão importante, na medida em que as liberdades, quaisquer que sejam, dependem de princípios de justiça igualitários em se tratando de direitos. O que surpreende é o fato de a igualdade de gêneros e a liberdade de religião serem consideradas mais importantes para a democracia do que eleições regulares, liberdade de expressão e liberdade de imprensa, por exemplo.

No Brasil (gráfico abaixo em inglês), os dados revelam uma situação muito semelhante ao que a realidade tem mostrado. Os valores democráticos estão centrados na igualdade de gênero e na liberdade religiosa, as duas respostas mais comuns para o que é “muito importante” ter no país. Não surpreende também que a resposta menos comum tenha sido a necessidade de partidos de oposição livres. O estudo mostra que, quando se trata de valores associados ao sistema político ou às garantias de liberade, os percentuais são baixos. Mesmo a liberdade de expressão (com 70% de respostas), parece, para o brasileiro, um valor isolado do sistema político e de mídias.

É claro que os dados em si mesmos precisam ser melhor analisados e a correlação entre eles mais aprofundada. Os números são apenas indícios. O que chama a atenção é a baixa proporção da liberdade de imprensa como valor democrático essencial. Vê-se, no levantamento, que não é um fenômeno isolado no Brasil e que suas características estão longe de ser resultado, única e exclusivamente, dos ataques do governo a jornalistas. Se compararmos os percentuais brasileiros com os dos Estados Unidos, de onde Bolsonaro tira inspiração, é possível perceber que, por lá, mesmo com todas as desavenças entre governo e jornalistas, liberdade de imprensa é mais essencial até que liberdade de expressão.

Não são novas as desavenças entre a imprensa e o Estado brasileiro, em sua história quase sempre conduzido por valores autoritários. E não se pode deixar de considerar a concentração de poder de poucos grupos econômicos de mídia no país, reflexo das concessões feitas a quem correspondeu aos projetos de governos caracteristicamente não democráticos. Quando Jair Bolsonaro e seus filhos provocam jornalistas e fornecem manancial para seus seguidores, anti-democráticos em boa parte (se não a maioria), fatores menos relevantes ganham força no debate sobre a liberdade de imprensa. Não que isso justifique a atitude. Mas é preciso reconhecer que o jornalismo também fornece subsídios para que pairem dúvidas sobre sua importância nos dias de hoje.

Jornalistas brasileiros ouvidos em um levantamento feito pelo Projeto Credibilidade, organizado por consórcio internacional, dão pistas importantes sobre a relação da imprensa com a democracia. No Brasil, o projeto é realizado em parceria entre o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (ProJor) e o Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), seguindo os princípios do consórcio com o objetivo de desenvolver padrões de transparência para qualificar e dar credibilidade à produção de notícias.

No levantamento feito com 314 jornalistas, majoritariamente da região sudeste e concentrados em São Paulo, o “jornalismo é central para a democracia”, mas não constrói narrativas contextualizadas e plenamente verdadeiras, não representa todos os grupos que formam a sociedade, tampouco as preocupações e as oportunidades de manifestação desses grupos através da mídia (gráfico abaixo). Essa concepção de si mesmo, corroborada por outros valores trazidos no levantamento, mostra o quanto o jornalista dos grandes centros de produção midiática se confina entre o que gostaria e o que se considera capaz de realizar.

Ao que tudo indica, o jornalismo vem perdendo o poder de mediação social não só porque os canais de diálogo entre a população e as esferas de poder são mais “diretos”. Os jornalistas, mesmo os que mantêm o rigor de apuração e honestidade no trato com as informações, são vistos como qualquer um capaz de mentir para defender interesses próprios ou de terceiros, especialmente os dos veículos para os quais trabalham. É como se um jornalista usasse o meio em que noticia os fatos cotidianos do mesmo modo como qualquer um usa as mídias sociais. Parece não haver mais diferença entre veículos noticiosos e o Facebook, o Twitter, o Instagram, o WhatsApp…

Os processos de produção jornalística são coletivos, passam por crivos em diferentes estágios, são negociados em termos de espaço e destaque, atendem a critérios éticos e organizacionais e estão fundamentadas na busca pela veracidade. Ataques a jornalistas são, antes de mais nada, uma forma de desvalorizar os métodos que aproximam versões e fatos, realidade e verdades. Mesmo que, para os próprios jornalistas, como mostra o Projeto Credibilidade, o exercício da profissão não seja visto plenamente como um exercício democrático.

Como fatores de descrédito em relação ao exercício jornalístico como expressão de democracia, o Projeto Credibilidade traz a posição de profissionais localizados nos grandes centros do país

De acordo com o filósofo Daniel Innerarity, que recém lançou o livro “Uma Teoria da Democracia Complexa: para Governar no Século XXI”, inédito no Brasil, vivemos um momento de simplificação de conceitos para uma realidade social bastante complexa. Para ele, a política não oferece condições suficientes para gerir a sociedade. Esse grau de simplificação sustenta os extremismos característicos do momento atual e o que ele chama de “consolo passageiro” para a solução de problemas. Em certo sentido, Innerarity sugere que é preciso romper com as políticas de curto prazo e assumir a fragilidade e a vulnerabilidade dos governos democráticos.

Os jornais já não têm a verticalidade que tinham, os partidos não são organizações férreas, os próprios agentes políticos estão submetidos ao monitoramento de todos os pontos de vista… A democracia, por sua própria definição, será sempre um sistema de governo frágil e vulnerável. E precisamos aprender a gerir essa vulnerabilidade.

Daniel Innerarity 26/02

Nesse cenário, o jornalismo não pode compactuar com a simplificação da realidade social. A ideia aceita pelos próprios jornalistas consultados pelo Projeto Credibilidade, de que a imprensa não representa a complexidade do mundo em que vivemos e não contextualiza os fatos cotidianos que divulga, enfraquece o exercício democrático de diversificar pontos de vista, abrir espaço para contraditórios, sugerir versões distintas baseadas em fatos e ampliar as possibilidades de interpretação da realidade social.

Outro pensador contemporâneo, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido há cerda de três anos, sustenta em sua obra que a fluidez do mundo atual não favorece ao Estado a prerrogativa de defender, sozinho, os valores da democracia porque política e poder já não têm vínculo direto. Em síntese, o poder não está mais com o Estado e a democracia como a conhecemos ainda se sustenta em políticas de governos cada vez mais frágeis. Bauman sugere que uma democracia global, e não de Estado, talvez forneça uma solução para a crise de representatividade em que estamos mergulhados. O “talvez” expressa mesmo uma incerteza, como se a sugestão dependesse de melhor reflexão. Bauman alerta, contudo, que outra democracia depende de outras instituições. As que temos não dariam conta dessa mudança.

Entrevista do sociólogo Zygmunt Bauman para o Fronteiras do Pensamento oferece uma perspectiva de como o polonês pensava saídas para a crise da sociedade moderna e líquida

Innerarity e Bauman têm em comum o entendimento de que não há mais espaço para adaptações nem soluções paliativas. Reformas administrativas e constitucionais, por exemplo, não estão no patamar dos problemas a serem enfrentados. Ambos defendem, no âmbito político, uma ruptura quanto à forma de gerir conflitos. E isso passa pelo reconhecimento de que a democracia não cabe mais dentro das instituições que vêm perdendo credibilidade e apoio popular, o que talvez se aplique também ao jornalismo. A imprensa vem perdendo valor como instituição mediadora, guardiã da liberdade de expressão e fiscalizadora dos poderes instituídos.

O presidente Jair Bolsonaro, na sua luta diária contra os fatos que põem em xeque as ações de seu governo, não é o único a desmerecer o jornalismo e a democracia. Mas sua trajetória política é marcada por polêmicas quase sempre destacadas pelos veículos de comunicação. E foi justamente nesse terreno que ele ganhou notoriedade para chegar ao Palácio do Planalto. Seu comportamento é, portanto, estratégico porque se aproxima de considerável parcela da população que agiria do mesmo modo em seu lugar. Está longe de ser apenas uma característica pessoal.

Assim como a democracia parece carecer de instituições mais robustas que a sustentem, o jornalismo tem procurado formas alternativas de obter credibilidade, outrora sustentada na mediação entre poderes e sociadade. O que Bolsonaro ainda não entendeu, e talvez aí esteja a saída, é que o jornalismo não vive mais de furos. A apuração responsável, demorada, a análise aprofundada de fatos e versões é que têm sustentado a qualidade do exercício jornalístico.

Bolsonaro, como afirma o filósofo espanhol Daniel Innerarity, é a personificação dos que oferecem “consolo passageiro” e “esclarecimento enganoso” para obter reconhecimento político. Os jornalistas, contudo, representam ainda a possibilidade de reaproximar política e poder, no sentido proposto por Bauman, de fornecer subsídios para uma valorização global dos direitos democráticos e da gestão dos conflitos políticos sob uma perspectiva menos centrada na simplificação de soluções para problemas que transcendem o papel do Estado.

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