A imagem do saneamento no país. Reprodução TV Brasil

Ainda criticadas por boa parte da população, as medidas de distanciamento social têm se mostrado essenciais para diminuir a curva de contágio do novo coronavírus, sobretudo num país precarizado pela falta de investimentos públicos. Associadas a outros fatores, contudo, tais medidas têm oferecido respostas interpretadas erroneamente quanto aos resultados. Ficar em casa, por exemplo, evitar o uso de transporte público ou trabalhar remotamente não são ações cabíveis para a absoluta maioria da população brasileira.

Fator de extrema relevância no cenário imposto pelo novo coronavírus são as condições de saneamento com as quais boa parte da população brasileira conta. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística aponta que “o país tem 57 milhões de residências sem acesso à rede de esgoto, 24 milhões sem água encanada e 15 milhões sem coleta de lixo”, em levantamento feito pela agência de checagem de informações Aos Fatos em 2018. Não é preciso dizer que as regiões Norte e Nordeste são as mais afetadas.

Quanto menor a cobertura de sanemanto, maiores as chances de epidemias causadas pelas condições precárias de vida. De acordo com o levantamento, as regiões Norte e Nordeste têm uma taxa de 110 e 121 internações por 100 mil abitantes, respectivamente. A média nacional é de 65. Só para se ter uma ideia, 93 % dos municípios do Amapá enfrentam doenças decorrentes da falta de saneamento. É o estado com maior incidência no país.

A Confederação Nacional das Indústrias (CNI), em levantamento semelhante também baseado nos dados do IBGE, indica a necessidade de um aumento de 62% nos investimentos em saneamento para que as metas estabelecidas possam ser alcançadas. Pelo Plano Nacional de Saneamento Básico, todos os municípios devem oferecer integralmente os serviços à população em 2033. Mas o levantamento aponta que, com os investimentos atuais, em 2050 as metas ainda não estarão cumpridas. As estimativas são de um aporte de R$ 21,6 bilhões anuais, contra os R$ 13,6 bilhões efetivamente investidos. Os dados são também de 2018.

A crise política e as constantes oscilações no âmbito da economia podem ser fatores que expliquem a falta de perspectiva quanto às soluções para os problemas crônicos na saúde pública. Mas isso agora importa pouco. O Brasil está à mercê da falta de investimentos e de proteção social, considerados no discurso do governo causa do atraso no desenvolvimento do país.

Mais de três milhões de internações foram feitas em uma década no Brasil por doenças causadas pela falta de saneamento (gráfico abaixo). Do ponto de vista político, pode-se supor que o novo coronavírus deve direcionar os debates nas eleições municipais para a infraestrutura na saúde. A carência no saneamento básico e seus reflexos em epidemias e endemias crônicas têm assento nas formas como os municípios lidam com o orçamento.

Quadro publicado pela agência Aos Fatos mostra decréscimo nas internações por carência de saneamento básico. Mas os índices ainda são altos

Acesso universal à saúde parece ser, neste momento, a política pública mais adequada. A questão é se o Sistema Único de Saúde (SUS) vai resistir ao desmonte promovido pela falta de coordenação federal na área da saúde. Segundo levantamento da Agência Pública de Reportagem e Jornalismo Investigativo, mais da metade das “450 regiões de saúde listadas no Sistema de Apoio à Gestão Estratégica do Ministério da Saúde possui menos de uma Unidade de Terapia Intensiva para cada 10 mil pessoas — o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”.

Em levantamento mais recente, a Associação Brasileira de Medicina Intensiva mapeou em janeiro deste ano 45.848 leitos de UTI no Brasil. Destes, 22.844 pertencem ao SUS, um pouquinho menos da metade. Os demais, são do sistema privado. Anterior à pandemia, a pesquisa tinha o intuito de verificar a capacidade de enfrentamento da demanda de casos. Mas a questão principal ainda continua sendo a distribuição de leitos. Há “desigualdade na oferta de UTI” e isso pode representar a necessidade de deslocamentos longos para pacientes em estado crítico. O “deserto” de leitos para terapia intensiva se espalha por todo o país (gráfico abaixo).

O gráfico elaborado por Bruno Fonseca, da Agência Pública, mostra o “deserto” de UTI no país

Com a aprovação do teto de gastos durante o governo Temer, em 2016, houve uma mudança na política orçamentária do governo federal. Antes, os gastos com saúde eram definidos a partir de um percentual da Receita Corrente Líquida – o que o governo efetivamente arrecada, descontados os compromissos constituicionais obrigatórios. Para se ter uma ideia, a RCL de 2019 foi de R$ 905,66 bilhões. A emenda constitucional aprovada no congresso, conhecida como PEC do Teto, estabeleceu que os gastos com a saúde passam a ser vinculados à inflação.

De acordo com especialistas em economia, as perdas de investimento no setor tendem a ser crescentes, visto que a Receita Corrente Líquida sempre supera a inflação. No ano passado, o governo deixou de empenhar mais de R$ 9 bilhões para a área da saúde, ao mesmo tempo em que gastou R$ 7,9 bilhões na compra de navios para a Marinha Brasileira. A questão nem passa pela discussão sobre o teto de gastos em si, mas pelas prioridades do governo em empenhar um orçamento quase sempre justificado como insuficiente para dar conta das despesas básicas do país por causa do tamanho do Estado.

Tabela com a Receita Corrente Líquida ano a ano e os gastos do governo com a saúde, publicada pelo G1 tendo como fonte o Tesouro Nacional.

Falta de recursos e diferenças regionais no acesso à saúde pública são apontados como fatores de risco para o sistema unificado no Brasil. Ao longo dos primeiros 30 anos, o SUS contribuiu para a melhora dos indicadores no país, como aponta artigo publicado na revista britânica referência em saúde The Lancet, pela pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard Marcia Caldas de Castro junto com outros colegas.

Também seguindo modelos matemáticos, o estudo de Marcia mostra que num cenário de estagnação dos investimentos quatro indicadores são impactados rapidamente: mortalidade infantil, atendimento pré-natal às gestantes, acesso a cuidados médicos primários e número de mortes evitáveis por doenças cardiovasculares. Os dois últimos relacionados aos efeitos da pandemia do novo coronavírus. Mesmo distribuídos de maneira homogênea pelo sistema, os impactos projetados pela pesquisa dão conta de que os municípios já carentes seriam os mais afetados.

Claro mesmo é que nem o novo coronavírus tem sido capaz, até o momento, de evitar a polarização política alimentada por declarações controversas de lideranças em diferentes níveis e espectros. A pesquisadora Raquel Recuero acompanhou em março a movimentação no twitter sobre o Covid-19 a partir de 100 twits com maior número de reincidência nas postagens. Em apenas um dia foram reunidos “214,492 mil tweets e mais de 167 mil nós” das postagens em português, entre 10:00h e 16:00h.

A diretora do Grupo de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise das Redes Sociais, o MIDIARS, apurou que cerca de 4 em cada 10 postagens no período foram de memes ou piadas. As informações sérias sobre a pandemia vinham em segundo lugar, com 23% das incidências. Mas o que chamou a atenção de Raquel foi a politização polarizada sobre os efeitos do novo coronavírus. Na avaliação dela, a pauta da saúde pública tem sido apropriada pela pauta política, oferecendo um espaço perigoso para a desinformação, partidarizando a doença e diminuindo o impacto das informações relevantes sobre como proceder no período pelo qual todos passamos.

Imagem publicada pela pesquisadora Raquel Recuero que mostra, em azul e em vermelho, a polarização das conversações sobre o novo coronavírus no twitter, no dia seguinte à ida de Bolsonaro às ruas para saudar manifestantes

Percebe-se que a pandemia apenas fez eclodir um cenário já preocupante, mesmo antes dos impactos causados pela crise sanitária. De viés político, os debates a respeito da situação econômica do país estão longe de enfrentar a precariedade de investimentos no que efetivamente interessa. Saúde é questão de Estado, inclusive descrita na Constituição Federal. A apropriação política, no sentido pejorativo mesmo, da agenda sanitária revela uma clara falta de compromisso com o sistema universal de saúde, acessível a quem mais precisa em momentos como este.

Hits: 6

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *