Está no Diário Oficial da União de 19 de agosto de 2020: o Governo Federal estabelece “normas educacionais excepcionais” enquanto estiver decretado o estado de calamidade pública por conta do novo coronavírus. O texto é resultado da Medida Provisória 934, que, em síntese, desobriga as instituições de ensino de cumprir o calendário mínimo de 200 dias letivos neste ano. Foi sancionado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, com vetos a dispositivos que envolviam dotação de recursos para estados e municípios. Há quase um mês aprovado no Senado, o texto original, que é do próprio Governo Federal, sofreu alterações.
Em síntese, a carga horária mínima deverá ser cumprida pelas instituições de educação básica e superior. Apenas a educação infantil não tem essa obrigação, uma vez que os conteúdos não precisam ser recuperados. Portanto, nos ensino fundamental e médio, que compõem a educação básica, a carga horária mínima precisa ser efetivada para que o ano letivo seja dado como concluído. No ensino médio, inclusive, os estudantes no último ano têm matrícula compulsória garantida em 2021 para compensar as perdas de aprendizagem.
Na educação superior, a carga horária mínima também precisa ser cumprida. E isso depende de cada curso, cujas diretrizes são diferentes. Na área da saúde, alguns cursos têm a prerrogativa de antecipar a conclusão quando o estudante tiver cumprido 75% da carga horária, desde que obedecidos os critérios da própria área e da legislação vigente. As atividades não presenciais serão consideradas válidas em todo o sistema educacional.

A relação entre dias letivos e carga horária é chave para entendermos o que a lei emergencial propõe. Usemos como exemplo o ensino fundamental, que tem carga horária mínima uniforme. Todas as escolas em 2020 tiveram de planejar suas atividades prevendo os conteúdos adequados para cada série, como determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, distribuídos em pelo menos 200 dias letivos e 800 horas. E a legislação é criteriosa quanto à necessidade de encontros entre professores e estudantes para validar essas atividades.
Dito de outro modo, a rigor, se entende a carga horária como a distribuição de conteúdos ao longo dos dias letivos em encontros regulares entre professores e estudantes. E essa é uma visão tecnocrática. Primeiro, porque a aprendizagem exige momentos de atuação do estudante, ainda que com supervisão. Depois, porque a educação envolve também atividades socioculturais e científico-tecnológicas fora da sala de aula. Encontros regulares, com hora marcada para cada disciplina, são ainda reflexo de um sistema de produção industrial ultrapassado.
Em sistemas educacionais mais desenvolvidos, a carga horária é vista como o momento de encontro para troca de experiências e construção de conhecimento. Os conteúdos são um meio de aprendizagem. As Linguagens, a Matemática, as Ciências e as Tecnologias são instrumentos para se desenvolver tanto habilidades intelectuais e cognitivas, como as que permitem agir adequadamente às situações da vida. Nesses sistemas, inclusive, existe espaço para o convívio social e a consolidação de qualidades humanas, inscritas na diversidade cultural. Isso também é currículo.
Voltemos à carga horária. A distribuição de conteúdos no Brasil se dá, no planejamento escolar mediano, pela quantidade de matérias. Portanto, os 200 dias letivos em um ano são como uma régua na qual se vai dividir as 800 horas de acordo com a quantidade de matérias necessárias para dar conta dos conteúdos a uma determinada série. Notem que estamos falando de quantidade mínima. No ensino fundamental, ou qualquer outro nível de aprendizagem, se pode adotar mais de 200 dias letivos e mais de 800 horas. Não menos.
Com a pandemia, as aulas presenciais, todos sabem, tiveram de ser interrompidas por medidas sanitárias. E ainda é uma incógnita quando serão retomadas. De acordo com pesquisa do Datafolha, oito em cada dez entrevistados consideram necessário manter as atividades escolares presenciais suspensas. No debate entre especialistas em saúde, ainda há a recomendação de que é cedo para se retomar as atividades mínimas nas escolas, mesmo com as medidas de isolamento social.
Escolas privadas mantiveram as atividades com a oferta de ensino remoto. Os professores têm sido forçados a usar tecnologias pouco usuais em suas atividades regulares e os estudantes trocaram as salas de aula por uma tela de computador, sem mudanças significativas na relação do ensino com a aprendizagem. Claro, é emergencial. Mas as instituições têm dedicado pouco tempo para pensar sobre a necessidade de mudanças profundas que serão necessárias quando as medidas sanitárias terminarem. É um debate que impacta diretamente no core business das corporações educacionais, para usar um termo típico da gestão.
Em escolas públicas não há estrutura suficiente para dar conta de compensar a carga horária com as atividades mediadas por tecnologias de comunicação e informação. Portanto, o calendário, seguramente, vai ser estendido para o ano que vem. Além disso, os estudantes da rede pública no país, em sua absoluta maioria, não têm condições de acesso adequado aos conteúdos via tecnologias digitais. O ministério da Educação, só agora, vai disponibilizar internet gratuita por rede móvel para cerca de 400 mil estudantes do país. “Chegou um pouquinho tarde”, reconheceu o ministro Milton Ribeiro.
Eclodem as desigualdades, tão exponencialmente quanto o contágio pelo novo coronavírus. Desobrigar as instituições de ensino a adotar o calendário letivo mínimo é quase nada diante do cenário caótico em que mergulha a educação no Brasil. São necessárias diretrizes mais concretas a respeito de como recompor os currículos, como recuperar as perdas de aprendizagem e como organizar o sistema para as demandas pós-pandemia. E isso passa por uma avaliação profunda das diretrizes curriculares, que deveria ser coordenada pelo, até aqui, ineficiente ministério da Educação.
A lei emergencial surge no mesmo momento em que se discute o orçamento do Governo Federal para 2021, no qual se constata mais investimento em Defesa do que em Educação e Saúde. Os cortes, na ordem de 13%, representam mais um passo na transferência do setor para a iniciativa privada. Já em 2019, o ministério da Defesa teve um aporte de R$ 4,2 bilhões em relação ao ano anterior, enquanto a Educação sofreu um corte de R$ 3,2 bilhões no mesmo período, segundo dados do Tesouro Nacional.
Tratar a lei emergencial para a Educação no âmbito meramente técnico é um prenúncio de que o sistema educacional público vai, paulatinamente, sofrer com a falta de políticas para universalizar o acesso e priorizar um projeto de desenvolvimento humano e cultural para o país. Como na Saúde, o governo federal tem tratado os dilemas educacionais negando sua importância para a economia e a geopolítica. É o preço a ser pago para encher os bolsos de investidores nos recursos tecnológicos e valorizar as commodities das organizações privadas de ensino.
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