Patamar de respostas dadas até aqui para enfrentar a indústria da desinformação não inclui velhas questões a respeito da mídia tradicional, tampouco dá conta dos desafios impostos pelas novas relações de mercado

Imagine receber um dossiê de 800 páginas a respeito de suas andanças pelas redes digitais. A jornalista francesa Judith Duportail tomou um susto quando decidiu cobrar da plataforma de relacionamentos Tinder os dados que a empresa mantinha sobre ela. Likes do Facebook, fotos do Instagram, dados de GPS, frequência no acesso ao aplicativo e outras informações pessoais constavam do relatório com mais 1,7 mil mensagens trocadas entre a jornalista e diversos perfis da rede.

Foram meses de insistência para conseguir o documento, apesar de a Lei de Proteção de Dados na Europa garantir ao usuário o direito de saber o que as plataformas guardam a seu respeito. A ideia de Judith era entender os critérios adotados pelo aplicativo para aproximar perfis. Descobriu bem mais a respeito de si mesma e sobre a quantidade de informações pessoais que fornecemos voluntariamente nas mídias sociais.

Jornalista francesa pôs no Twitter link para o próprio relato no Guardian

Outro caso curioso é o de uma cirurgiã holandesa, suspensa condicionalmente da atividade por negligência com uma paciente no pós operatório. Ela foi autorizada a voltar à prática médica, ainda que com medidas disciplinares. Contudo, no sistema de busca do Google, seu nome continuava aparecendo nos primeiros resultados em uma lista negra não oficial de médicos, o que levou à perda de potenciais clientes. A cirurgiã ganhou na justiça o “direito ao esquecimento”.

Em outras palavras, a justiça holandesa considerou que, mesmo com informações corretas sobre a negligência cometida no caso em questão, a menção pejorativa do site indicava que a médica não estava apta a realizar suas atividades, o que não correspondia à medida disciplinar. O link teve de ser retirado do sistema de busca. Além disso, houve o entendimento de que as informações sobre a negligência tinham lugar no site oficial do conselho médico holandês.

Encerrado em julho de 2018, o caso está no contexto de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia tomada quatro anos antes, segundo a qual os cidadãos europeus têm o direito de exigir que informações “inadequadas, irrelevantes ou excessivas” sejam tiradas da internet. Desde lá, o Google registra quase 962 mil pedidos de remoção, envolvendo cerca de 3,8 milhões de links até agora. Por enquanto, a medida está restrita aos países da União Europeia.

Gráfico disponível em pagina do Google com os números até 25 de agosto

Com o Facebook foi diferente. No ano passado, a política austríaca de direita Eva Glawischnig-Piesczek garantiu na justiça que a empresa retirasse os links de postagens que a relacionavam com movimentos fascistas. Nesse caso, a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia teve abrangência internacional, forçando o Facebook a apagar os registros em todos os países. Foi um duro golpe nas tentativas de autorregulação tomadas pelas gigantes de tecnologia.

Não se sabe muito a respeito dos algoritmos e sobre os critérios usados pelas plataformas digitais para selecionar e classificar conteúdos. Tampouco as regras que determinam a relação entre usuários e suas contas em redes sociais contemplam o direito à privacidade e outras formas de proteção, uma vez que as leis dependem das opções de cada país.

No Brasil, por exemplo, não existem normas que exijam das empresas a emissão de relatórios individuais sobre informações que elas dispõem sobre os usuários. Quanto ao “direito ao esquecimento”, há jurisprudência que até oferece certas prerrogativas. Contudo, as decisões dizem respeito também a material jornalístico, cujo teor não é o mesmo do verificado nas mídias sociais.

Em maio deste ano, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não é possível a aplicação jurídica do “direito ao esquecimento” para vetar publicações futuras. O parecer foi usado para justificar a negativa de recurso pedido por uma pessoa que cumpriu pena por crime cometido há três décadas e queria o direito de não ter mais matérias jornalísticas publicadas a respeito. Para o STJ, acatar o recurso implicaria censura prévia. Além disso, havia nítido interesse público na divulgação do episódio, sem que a reportagem contestada mostrasse qualquer evidência de sensacionalismo.

O debate é central no momento em que se discute no país formas de conter a onda de desinformação nas mídias sociais. Aprovado no Senado, o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News, tramita na Câmara dos Deputados e sustenta basicamente a necessidade de proibir contas falsas ou automatizadas e de identificar conteúdos impulsionados e publicitários. A questão, segundo os críticos ao projeto, é que a proposta em tramitação resume-se à vigilância de usuários, o que poderia configurar algum tipo de censura.

Recentemente, 27 instituições de comunicação enviaram ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, uma carta com sugestões para ampliar o debate e formalizar uma proposta que atue sobre os modelos de contratação dos serviços de internet e não sobre os usuários. Defendem as instituições que a visibilidade de quem financia campanhas de desinformação seria garantida se as leis brasileiras para a publicidade fossem aplicadas também nesse contexto.

De acordo com o documento, as plataformas deveriam subsidiar a audiência com informações para diferenciar conteúdos pagos de matérias jornalísticas e obedecer a critérios e métricas para detalhar nos relatórios semestrais, já obrigatórios por lei, o alcance do material impulsionado e da publicidade. A chave estaria na diferença entre conteúdos financiados para fins específicos e os de interesse público.

Comentários de Alexandre Garcia na CNN evocam generalidades em nome de uma falsa pluralidade

O problema é que as fake news não estão restritas às plataformas de mídias sociais. Segundo a agência de checagem Aos Fatos, o jornalismo televisivo, baseado exclusivamente em declarações, vem servindo de suporte para a indústria da desinformação. A CNN Brasil, por exemplo, abre espaço para pontos de vista duvidosos ou enganosos com a alegação de que promove a ampliação do debate pela diversidade de opiniões.

A emissora de sinal fechado recém inaugurada no país comete, a rigor, dois erros cruciais. O primeiro por defender a ideia de que debates são resultado de pontos de vista antagônicos, quaisquer que sejam, para oferecer ao telespectador a possibilidade de formar a própria opinião. Segundo, torna-se porta voz de discursos anedóticos e silogismos baratos característicos das campanhas de desinformação, cuja capilaridade se assenta em teorias de conspiração e no anticientificismo predominante em assuntos sobre os quais quem opina sabe quase nada a respeito.

Em nome de uma falsa pluralidade, o jornalismo televisivo alimenta um contingente de canais no YouTube que usa a desinformação para gerar audiência. Manchetes espalhafatosas associadas a vídeos com quase nada de fatos concretos chamam a atenção pelo sensacionalismo e pelo caráter persuasivo do conteúdo. As declarações ganham veracidade por si mesmas porque estão respaldadas em crenças e não em evidências.

Exemplo de manchete sensacionalista baseada em silogismo barato

Determinados veículos na internet também simulam profissionalismo ao usar o jornalismo declaratório e as técnicas de produção de notícia. É o que garante o financiamento pelo número de seguidores e pela distribuição de propaganda através de algoritmos. Conteúdos enganosos, discursos de ódio e antidemocráticos se travestem de material jornalístico para ganhar credibilidade e atrair público e anunciantes.

Movimento que busca tirar financiamento desse tipo de publicação, o Sleeping Giants conseguiu convencer mais de 270 empresas no Brasil a rever seus investimentos em propaganda digital. Em três meses, veículos de informações nocivas perderam quase R$ 1 milhão em receita, ainda que tenham conseguido recuperar parte dos recursos por outras vias. Na justiça, já há tentativas de revelar quem está por trás das manifestações no Twitter que têm tirado o sono dos produtores de conteúdo nocivo na internet.

Como o Sleeping Giants de posiciona

A Polícia Federal chegou a abrir investigação contra o movimento, sem sucesso. Apuração do Intercept Brasil identificou que o delegado responsável é cunhado de editor do site bolsonarista Senso Incomum, atingido pela atuação do Sleeping Giants. Como os algoritmos de busca, os de distribuição de propaganda não diferenciam o tipo de conteúdo ao qual vinculam um determinado anúncio. Quem investe nem sempre sabe onde a propaganda aparece. O movimento adverte e cobra, o que não configura qualquer crime.

Tempero indigesto

Nos campos político e econômico, o combate às campanhas de desinformação e discursos de ódio ganham um tempero mais indigesto. Legítima, a manifestação das instituições de comunicação é uma demonstração de que a tradicional indústria de mídia quer estender o mercado com regras que também precisam ser bem analisadas. É importante a disposição de diferenciar conteúdos pagos de material jornalístico, assim como é essencial a defesa da atividade jornalística. Mas é preciso aprofundar a questão.

Monotor de Propriedade de Mídia no Brasil acompanha a concentração econômica e os riscos à livre informação

É tradição no Brasil a concentração econômica da mídia e dos sistemas de comunicação. Poucas famílias detêm o direito de explorar emissoras de TV e rádio, uma concessão pública usada como moeda de troca no jogo político. Não são poucos os parlamentares, por exemplo, donos de emissoras espalhadas pelo país. As regras de concessão brasileiras privilegiam a propriedade cruzada, dando aos poucos donos de veículos de comunicação a prerrogativa de ampliar o patrimônio em diferentes setores da mercado.

Dois exemplos recentes ajudam a entender o cenário. Acuado por denúncias de corrupção, o presidente da República Jair Bolsonaro recorreu à Record, grupo de mídia que o apoia, para denunciar a Globo, concorrente e crítica do atual governo, pelo mesmo tipo de crime. Moeda de troca, a rede financiada pelo bispo Edir Macedo e o SBT tiveram, no ano passado, um volume maior de verbas publicitárias repassadas pelo Governo Federal.

Jornalismo declaratório da Record com intuito de tirar o foco das acusações contra Jair Bolsonaro

Ao mesmo tempo, cumprindo uma agenda econômica neoliberal, a Globo, principalmente através de seu principal telejornal, tem depreciado o funcionalismo público brasileiro, considerado o vilão das contas públicas no país. As reportagens veiculadas no Jornal Nacional usam como referência uma pesquisa do Instituto Millenium, think tank atrelado aos valores defendidos pelo ministro Paulo Guedes, para mostrar que o Estado brasileiro tem nos ombros uma pesada carga salarial. Não há pontos de vista divergentes nas matérias nem confrontação dos dados com fontes oficiais do próprio Estado.

Nítidas manipulações, Record e Globo dão sua parcela de contribuição para desinformar. Portanto, não há como discutir a indústria da desinformação sem reconhecer que o buraco é bem mais profundo. Se, por um lado, existe uma indústria que financia deliberadamente campanhas de difamação, ódio e produzem informações duvidosas ou enganosas, de outro, há também uma tradicional estrutura de poder econômico que usa os benefícios concedidos pelo Estado para influenciar no jogo político.

As diferenças entre Jornalismo e Propaganda são, nesse sentido, o menor dos problemas. Os limites entre os conteúdos pagos e os de interesse público sempre foram tênues, quando analisados sob a perspectiva do mercado e da indústria da comunicação. Globo e Record, por exemplo, em certos aspectos se assemelham a grupos organizados em mídias sociais acusados de manipular a opinião pública.

É preciso um outro patamar de respostas para dar conta do desafio de combater a desinformação.


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