Paulo Guedes tem usado de todos os recursos para desmoralizar o serviço público no país. E com apoio de boa parte da grande imprensa. Na agenda do ministro da Economia, além de adequar projetos de assistência social para atender aos caprichos eleitorais do presidente Jair Bolsonaro, está pressionar a classe política na implementação de uma reforma administrativa na qual a estrutura do Estado, responsável pelo descontrole de gastos, deve diminuir.
Bancada pelo Instituto Millenium, uma think tank da qual Guedes é um dos fundadores, recente pesquisa traz referências alarmantes sobre o nível de gastos com a folha de pagamento do funcionalismo público brasileiro. Diz a pesquisa, usada por parte da grande imprensa como fonte para pautar o debate público sobre o tamanho do Estado, que os salários pagos a servidores foi 3,5 vezes maior que os gastos com saúde e educação.
Amparado por recursos de Inteligência Artificial e big data, o estudo analisou 30 anos de serviço público e aponta que o patamar médio salarial pago aos servidores os coloca entre os 6% mais ricos no Brasil, contribuindo para a consolidação de desigualdades. Em 2019, por exemplo, 605 mil funcionários federais civis custaram, de acordo com o Instituto Millenium, 21 vezes mais que os investimentos feitos em saneamento básico. Além disso, até 2034 estima-se que um terço dos servidores na ativa devem se aposentar, o que representaria uma “janela de oportunidade” para a implementação de reformas para desonerar os cofres públicos.
O problema é que os resultados mostrados pela think tank não levam em consideração outros valores que ajudam a aprofundar o debate. Primeiro, as premissas do estudo supõem que a folha de pagamento do funcionalismo não é parte do investimento em serviços que o Estado deve prestar à população. Segundo, atribui isonomia entre os termos “federal” e “nacional”, o que não condiz com as estruturas que amparam o serviço público em níveis federativos diferentes. Também desfavorece uma análise mais profunda sobre como cada um dos três poderes onera a folha de pagamento e com que proporção. Além de reduzir os problemas do Estado às despesas com folha de pagamento.
Vejamos, por exemplo, a ideia de que os servidores estão entre os 6% mais ricos por conta de um salário médio considerado alto. Estatisticamente falando, a média é usada como medida de concentração de dados cujos valores estabelecem uma referência que não leva em conta a frequência com que aparecem. No quadro abaixo é possível perceber que há diferenças gritantes entre os níveis federativos (federal, estadual e municipal) e os poderes (executivo, legislativo e judiciário). E o número de servidores em cada um dos níveis e poderes é bastante distinto. A média, nesse caso, pode camuflar informações importantes para a análise.

Portanto, não importam apenas os dados em si, mas principalmente os critérios usados para agrupá-los. Outras instituições vêm propondo interpretações um pouco distintas em relação ao peso do Estado na Economia. Estudos, inclusive, menos influenciados pela visão neoliberal que hoje orienta o governo em suas propostas de reforma. É bom lembrar que Jair Bolsonaro engavetou uma primeira tentativa de encaminhar ao Congresso Nacional a reforma administrativa. Muito mais por falta de apoio político do que por pressões do funcionalismo público.
De acordo com o Atlas do Estado Brasileiro, em “Três décadas de evolução do funcionalismo píblico no Brasil (1986-2017)“, estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas, houve uma expansão significativa do setor público brasileiro em três décadas, cujos impactos não justificam o discurso demonizador promovido pelo ministro da Economia.
As remunerações médias aumentaram no conjunto do setor público, mas com trajetórias distintas ao longo do tempo — a primeira, de meados dos anos 1980 até a implantação do Plano Real, em 1994. A segunda, desse período até 2003, ano em que se inicia um movimento de aumento continuado das remunerações médias, até 2014. Desde então, a crise econômica produziu estabilidade ou retração das remunerações médias. (IPEA)
Entre 1986 e 2017, o crescimento do setor público corresponde, em média, 2,5% ao ano. Uma proporção não muito diferente quando se avalia o crescimento do setor privado até 2014, antes dos impactos de uma crise econômica que, desde lá, vem contribuindo para o crescente desemprego. De acordo com o IPEA, o setor privado cresceu até 2014, em média, 3% ao ano. A conclusão, óbvia até, é que os vínculos no setor público tendem a crescer quando há retração de mercado. Muito mais pela diminuição dos postos de trabalho no setor privado do que por outros fatores.
O Atlas do Estado Brasileiro mostra que o crescimento do setor público em número de vínculos é estável, se comparado ao setor privado. Depois de 2014, a crise econômica promoveu uma retração que ainda persiste. Em três anos, 10 milhões de vínculos empregatícios foram perdidos, enquanto o setor público se manteve estável desde 2010.
De cada 100 servidores públicos, apenas 11 são federais. Em três décadas o crescimento da força de trabalho estatal concentrou-se nas áreas de saúde e educação, com volume maior nos municípios. A tendência de municipalização do setor público tem se evidenciado desde os anos 50. Durante o governo militar, nos anos 70, acentuou-se. Mas foi com a Constituição Federal de 1988 que os municípios ganharam mais responsabilidades na gestão de áreas estratégicas.
Considerar o funcionalismo “federal” como “nacional” é um equívoco. A participação do servidores federais no total de vínculos públicos em três décadas diminuiu. Em 1986, dois anos antes da Constituição, os servidores públicos federais representavam 18,1% do efetivo nacional. Em 2017, representavam 10,4%. É importante observar que, nessa série histórica, as despesas com servidores civis federais mantiveram a média de 2,7% em relação ao Produto Interno Bruto, considerada baixa em relação a outros países com economia similar à do Brasil. Quando somados os vínculos nos três níveis federativos é que o percentual chega a 10,5%.
A expansão quantitativa no setor público se concentrou nos municípios e, nestes, quase a metade das ocupações pertence ao núcleo de provimento de bens e serviços do Estado de bem-estar: saúde e educação. Nos estados, o perfil ocupacional nessas áreas é menor, embora também alcance quase 50% ao se incluir as ‘forças de segurança estaduais’ — policias e bombeiros. O setor público municipal e estadual precisa mais bem conhecido e analisado, e suas características devem ser mais bem integradas em discussões sobre políticas orientadas ao desenvolvimento de um setor público que entregue bens e serviços de modo republicano e eficiente. (IPEA)
Os estudos a respeito do impacto da força de trabalho estatal na Economia têm usado a Receita Corrente Líquida como principal dado de comparação, por descontar gastos orçamentários primordiais na análise, além de servirem como parâmetro para a Lei de Ajuste Fiscal. É possível perceber na série histórica levantada pelo IPEA que a proporção de despesas com o funcionalismo público, aqui incluindo todos os servidores civis e militares ativos, se mantém a mesma em média, na faixa de um terço da RCL. Os dados estão disponíveis no site do Tesouro Nacional, mas é preciso garimpá-los.
Quando se fala em reduzir a máquina ou seu custo, deve estar claro que é da redução da prestação de serviços palpáveis pelo cidadão que se trata. Em outros termos, “menos máquina” pode significar reduzir quadros de professores, profissionais da saúde, fiscais do trabalho, cadastradores do bolsa-família, fiscais ambientais e outros tantos profissionais que prestam serviços essenciais. Mesmo no nível federal, a existência de carreiras profissionalizadas para coordenar programas federais de atendimento ao cidadão e para repasses de recursos a estados e municípios é uma necessidade. (IPEA)
Um dos fatores primordiais nesse debate é a estabilidade nos vínculos com o serviço público. Ao longo, ficou claro que houve avanços na consolidação de uma estrutura estatal que buscou valorizar sua força de trabalho. A estabilidade, prerrogativa de concursados, oferece garantias de que os serviços não estarão sujeitos a pressões de gestores temporários, especialmente os de cargos eletivos. Quando um ministro da Economia, cargo temporário, sustenta a proposta de acabar com a estabilidade, por exemplo, ele está reforçando a possibilidade de compor e recompor a força de trabalho de acordo com o viés político, ideológico ou com os mercados.
A estabilidade no vínculo com o serviço público tem a ver com o cargo, não com a pessoa que o ocupa. Por isso os concursos públicos funcionam como seleção criteriosa de acesso aos cargos cuja função precisa ser garantida e protegida de dirigentes eleitos. A legislação atual permite o desligamento quando o pertencente ao cargo não cumpre as funções para as quais foi designado e publicamente selecionado. Os levantamentos mostram que os servidores de carreira é que englobam o grande contingente de serviços, o que é considerado positivo pelos organismos econômicos.
Ajustes justos e reformas que fortaleçam as capacidades do Estado para avançar no projeto republicano de reduzir desigualdades, proteger cidadãos das incertezas do mercado de trabalho e apoiar as políticas de mobilidade social ascendente, por exemplo, requerem uma compreensão mais precisa e um debate mais transparente, ao mesmo tempo com informações detalhadas e abrangentes sobre as transformações no setor público brasileiro nas últimas décadas. As noções de “máquina”, que se diz “inchada’, “ultrapassada”, “ineficiente”, “lenta”, “emperrada” carecem de sentido sem indicadores claros relativos à eficiência do setor público brasileiro. (IPEA)
É fato que há uma deterioração no nível de confiança quanto às instituições públicas e à qualidade de seus serviços. Deterioração que pode ser analisada sob diversos aspectos, incluindo o impacto dos gastos nas contas públicas. A questão em debate, entretanto, é o quanto as reformas administrativas vão abrir de brechas para o desmonte de uma estrutura que, quando analisada de forma responsável, merece ser qualificada no que diz respeito aos resultados.
Há muito o que discutir sobre o serviço público no Brasil. Mas há muita desinformação, inclusive oficial. O Estado brasileiro, de acordo com os dados, não é tão grande quanto se apregoa e os impactos das políticas adotadas em governos anteriores não foram tão danosas como se quer fazer parecer, ainda que haja necessidade de correções quanto à qualificação dos serviços prestados. O nível de comprometimento da estrutura merece atenção, mas não pelo viés de sua redução.
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