Questionado informalmente por uma apoiadora que se diz farmacêutica, o presidente Jair Bolsonaro enfatizou que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar a vacina”, numa alusão à garantia de liberdades individuais no que diz respeito às medidas sanitárias contra o novo coronavírus. A frase foi pronunciada em contexto específico: uma resposta bem pontual à ideia de que a produção de vacinas é demorada e, só por isso, as que estão em teste agora no Brasil não vão funcionar, mesmo com aprovação dos órgãos de fiscalização sanitária.
Transformada em peça de campanha publicitária, a declaração ganha outros contornos e concede aos ativistas antivacina um apoio, no mínimo, desnecessário. No Twitter, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom), diz que o governo “investiu bilhões de reais para salvar vidas e preservar empregos”, o que inclui a parceria com a Oxford na produção de 100 milhões de doses a serem distribuídas no país, “mas impor obrigações não está nos planos” quando o assunto é vacinação.
Tanto a declaração como a peça publicitária estão em desacordo com com a Lei 13.979, de fevereiro deste ano, assinada pelo próprio Bolsonaro, na qual o Estado está autorizado a tomar medidas sanitárias de “emergência em saúde pública” e de “proteção da coletividade”. Em síntese, o texto não deixa dúvidas:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:
(…)
III – determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
(…)
Numa outra via, o presidente e candidato à reeleição nos Estados Unidos, Donald Trump, tem acenado para a distribuição de uma vacina contra o novo coronavírus ainda em outubro, antes, portanto, do pleito em 3 de novembro. A retórica é meramente política e eleitoreira, uma vez que as vacinas em testes mais avançados ainda estão na fase de análise em humanos, com perspectivas, otimistas diga-se, de distribuição no ano que vem.
Os russos também protagonizam falsas esperanças no jogo político de vencer a corrida contra o SARS Cov-2 ao anunciar uma vacina em larga escala sem estudos clínicos publicados e analisados por especialistas, suprimindo, inclusive, a fase de testes considerada mais essencial. Não por acaso, a Organização Mundial de Saúde tem alertado para o fato de que uma vacina ineficaz pode ser ainda mais perigosa que a Covid-19. É uma corrida sem vencedores.
Essa narrativa de apropriação sobre a “cura” da doença que parou o mundo não oferece caminhos exequíveis em tão curto prazo. Primeiro porque não se trata de imunizar parte da população. Isso não vai nos poupar das restrições sanitárias. De nada adianta imunizar os estadunidenses se todo o resto da América continuar convivendo com o dilema do contágio em larga escala, especialmente quando não se sabe se a resposta imune das vacinas promissoras será duradoura. Depois, os maiores desafios não estão na produção do medicamento, mas nas políticas públicas de distribuição e aplicação.
Se não chegar à quase totalidade da população, os altos investimentos e o esforço de tempo na produção de vacinas contra a Covid-19 terão sido desperdiçados. Não se trata, portanto, de preservar liberdades individuais, uma vez que, sem uma vacina eficaz, todas as relações sociais e econômicas continuarão dependentes de medidas restritivas. Só as 100 milhões de doses negociadas pelo governo brasileiro com a universidade de Oxford vão custar aos cofres públicos R$ 1,8 bilhão, de acordo com o Ministério da Saúde. Dinheiro público jogado fora, se as pessoas não se vacinarem.
Mas é preciso reconhecer que a declaração de Jair Bolsonaro, ainda que polêmica, põe no centro do debate uma questão essencial. Para que o Estado tome a decisão de incentivar a vacinação em massa, é preciso que tenhamos um fármaco que funcione. Isso leva tempo e exige etapas prévias rígidas de testes. Pressupor que as vacinas em desenvolvimento serão placebos porque estão sendo produzidas rapidamente, como faz crer o presidente, mostra que a irresponsabilidade dele diante da pandemia é tão patológica quanto estratégica.
Por que a vacina está no centro do debate?
Em abril, a Organização Mundial de Saúde estabeleceu que uma vacina com 50% de eficácia, aplicada em duas doses, seria aceitável neste momento. Mas as estimativas ideais são de uma capacidade de imunização de 70%. Ou seja, no caso da vacina de Oxford, o ideal é que, das 100 milhões de doses a serem aplicadas no Brasil, 70 milhões funcionem. Ainda assim, essa resposta imune alcançaria cerca de um terço da população.
Bruce Y. Lee, pesquisador da Universidade de Nova Iorque, sugere a partir de simulações que uma vacina poderia ter 60% de eficácia se toda a população for vacinada. Considerando que toda a população brasileira fosse inoculada, os dados da simulação dizem que ela teria de funcionar em cerca de 126 milhões. Ou seja, as doses negociadas com a Oxford nem cobrem este número. É claro que outras vacinas em teste no Brasil também terão doses disponíveis. Mas, somadas, não alcançariam toda a população. E estamos falando só de 2,7% da população mundial.
Ter uma vacina significa alcançar a imunidade coletiva (de rebanho ou comunitária) para a Covid-19 com mais rapidez e segurança. O governo brasileiro, com ênfase do presidente da República, tem insistido na ideia de que essa imunidade pode ser alcançada de forma natural, sem a necessidade das medidas restritivas que prejudicam a economia. E, de fato, isso é possível. A questão é a que preço. A Sociedade Brasileira de Imunologia tem um posicionamento enfático sobre a ideia:
A imunidade de rebanho pode ser adquirida a partir da infecção natural ou vacinação. Contudo, imunidade de rebanho permanente só pode ser atingida com vacinação massiva e continuada. A imunidade de rebanho alcançada por infecção natural é apenas um ponto teórico em uma linha de tempo, que é perturbada por nascimentos, viagens, envelhecimento, e aumento de pessoas que adoecem e entram em grupos de risco.
A entidade emitiu em 14 de agosto uma nota técnica sobre o desenvolvimento e a eficácia de vacinas para a Covid-19, contendo explicações a respeito do processo de produção e da perspectiva de resultados com os testes realizados no Brasil. Entre outras questões, diz o documento (abaixo) que a “única forma segura” de se alcançar a imunidade contra o novo coronavírus é oferecer um programa público de vacinação, desde que a vacina, lógico, funcione.
Como chegar a uma que funcione?
Primeiro é preciso entender que o Brasil foi escolhido como cenário de testes para vacinas já em estágio avançado de análises por causa da resposta do Governo Federal diante da pandemia. É simples de entender: as que estão na última fase de experimento, quando são aplicadas em milhares de voluntários, precisam de um ambiente em que as pessoas estejam expostas ao vírus. Os pesquisadores não podem, por razões éticas, induzir os voluntários a contrair a doença. Por isso precisam de um lugar em que os riscos sejam naturalmente altos.
Nesse cenário, quanto menos se acredita na força do contágio, quanto menos se obedece às medidas de restrição, quanto mais “negacionistas” (talvez o termo mais adequado seja ignorantes) forem as autoridades responsáveis pela condução das medidas sanitárias, quanto menos descrentes nas recomendações científicas, mais expostos ao vírus estão os voluntários e mais rápidas serão as respostas de eficácia das vacinas em teste.
Ao mesmo tempo, deve-se enaltecer a decisão do Ministério da Saúde de investir em transferência de tecnologia no processo de criar proteção contra o vírus. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) não está apenas acompanhando o desenvolvimento da vacina da Oxford. Toda a tecnologia será repassada à entidade brasileira, que será capaz de produzir em solo brasileiro as doses necessárias. Isso se, em complemento, a infraestrutura adequada for implementada pelo Estado.
Para se chegar a uma vacina eficaz, tempo é essencial. Não na agilidade, mas na segurança. Estima-se que de cada 100 vacinas em produção, apenas seis cheguem ao mercado. As etapas são rígidas e dependem de aprovação de órgãos fiscalizadores de cada país onde ela é testada. As promissoras contra a Covid-19 foram agilizadas por usarem estratégias já aplicadas em outras produções. Quer dizer, na etapa em que se define como estudar o patógeno, no caso o vírus SARS Cov-2, e combatê-lo foram adotadas estratégias já aplicadas em outros estudos.
A partir daí, três fases de testes clínicos em humanos são necessárias: 1) a de segurança, em que se testa mais os problemas do que propriamente a eficácia da vacina; 2) a de eficácia em grupos específicos, na qual se avalia, entre outras coisas, o nível de proteção; e 3) a de aplicação em massa, na qual a vacina e um placebo são aplicados aleatoriamente em milhares de voluntários. Cada uma delas leva um tempo razoável para aprovação. No caso da Covid-19, todas elas têm sido antecipadas em função da emergência sanitária.
Essa antecipação não significa, necessariamente, que os prazos estão sendo atropelados. A questão central na última fase de testes é a quantidade de voluntários que fazem parte da população analisada. Quanto maior o número, melhor. Mas é o tempo de resposta que conta. O acompanhamento leva meses, até anos em determinados casos. A quantidade de doses necessária para se obter respostas seguras é também importante. Podemos ter uma vacina com uma única dose a ser aplicada periodicamente, como a da gripe, ou uma que exija duas ou mais etapas subsequentes.
As vacinas em produção também se baseiam em tecnologias diferentes. Tem as que usam o próprio vírus ou pedaços deles, tem as que usam vírus similares, as que usam genes manipulados, as formas de buscar imunidade são amplas. Importa nesse quadro, evidenciar que o novo coronavírus foi responsável por unificar esforços científicos sobre um objeto de estudo como nunca se viu antes, não só na tentativa de se encontrar uma proteção imunológica. Formas de tratamento, medidas de prevenção, são vários os estudos.
Pesquisadores têm sido estimulados a publicar o mais rapidamente possível os resultados dos estudos os quais estão empreendendo. A orientação da OMS tem o intuito de fazer chegar aos cientistas de diversas áreas do conhecimento a produção sobre a Covid-19, para que se possa revisá-los também com mais urgência. Contudo, a pressa não combina com o rigor e o método científico. A Ciência tem seu tempo.
É por isso que os resultados, todos eles, precisam ser analisados com cautela. O novo coronavírus é um desconhecido ainda. As medidas e orientações atendem ao que se sabe no instante dos resultados mais recentes sobre os estudos a respeito dele. É assim que funciona o mundo da Ciência. Tudo é refutável, especialmente em situações nas quais se está aprendendo com as situações de momento.
O receio dos especialistas é que a pressa na produção de uma vacina, também objeto de uso político por parte de governantes sem escrúpulos, promova ainda mais descrença na Ciência. Se não forem cumpridas e analisadas com rigor todas as fases de produção, corremos o risco de estender ainda mais a necessidade de medidas sanitárias drásticas para proteger a vida humana. Um preço que talvez Trump, Bolsonaro ou Putim estejam dispostos a pagar em troca de cargos políticos, mas que custará muito mais caro quando outras pandemias baterem à nossa porta.
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