O Jornalismo de apuração em profundidade revela o poder extremo de uma democracia de gabinete, na qual a persuasão da propaganda e o ódio à política escondem as falcatruas de “cidadãos de bem” enquanto líderes

Bob Woodward, premiado jornalista estadunidense, esteve no centro de uma polêmica que põe o Jornalismo em debate. Mesmo antes do lançamento de “Rage” (“raiva”, numa tradução livre) em 15 de setembro, seu mais recente livro já estava no topo da lista dos mais vendidos na Amazon. Woodward revela no livro, entre outras coisas, que o presidente Donald Trump amenizou propositadamente os riscos do novo coronavírus para não causar pânico. Como a verdade para Donald Trump é o que ele diz, “Rage” é uma espécie de testamento político assinado a dois meses das eleições em que é novamente candidato.

Acontece que as revelações sobre o posicionamento do governo estadunidense diante da pandemia renderam críticas ao jornalismo de Bob Woordward porque são consideradas tardias. É como se o jornalista fosse corresponsável pela trágica expansão do vírus SARS Cov-2 nos Estados Unidos e pelas mortes decorrentes da negligência e da negação do governo em tomar medidas sanitárias adequadas ao controle da pandemia.

Sustentam os críticos, incluindo profissionais de imprensa, que Woodward tinha o compromisso jornalístico de divulgar as declarações de Trump sobre a Covid-19 e não usá-las como propaganda do livro meses depois de gravadas. Soma-se ao argumento dos críticos o fato de que as revelações soam como uma espécie de oportunismo político para dar munição ao adversário de Trump, o democrata Joe Biden, na corrida eleitoral.

Woodward, por outro lado, pondera que as declarações de Trump têm a tendência de reproduzir um mundo no qual só ele, Trump, vive. Por isso, o jornalista tem o compromisso de checar todas as afirmações, cruzar referências, verificar datas e registros oficiais, apurar os fatos antes de considerar verdadeiras as afirmações do presidente dos Estados Unidos. Isso leva tempo, o que justificaria a demora na revelação da conversa.

Um dos protagonistas no caso Watergate, Bob Woodward já publicou vários livros a respeito de presidentes estadunidenses. “Rage”, aliás, é o segundo sobre Donald Trump. O primeiro, “Medo”, lançado em 2018, mostra um presidente intempestivo ao tomar decisões. Trump recusou-se a dar entrevistas para essa primeira publicação. Woodward recorreu então a “centenas de horas” de entrevistas com outras fontes primárias, atas de reuniões, diários, arquivos e documentos do governo, como explica o jornalista no próprio livro. Isso significa que ele teve o cuidado de ouvir as pessoas que participaram diretamente ou tiveram conhecimento dos eventos abordados na publicação, além de verificar documentos para confirmar as declarações.

O debate sobre a responsabilidade de Woodward em relação à Covid-19 não deixa de ser interessante. O fato de Trump ter resolvido falar desta vez não significa que só a palavra dele seja suficiente. Checar as versões do presidente com outras fontes primárias, analisar documentos e atas de reuniões, consultar registros oficiais, tudo isso faz parte de um método de trabalho que garante credibilidade ao Jornalismo e segurança ao jornalista quanto à veracidade da narrativa.

No Brasil, a Operação Lava Jato foi dissecada pelo Jornalismo comprometido com o interesse público. No centro do debate, o governo Bolsonaro usou o fato de que as denúncias contra irregularidades na condução de investigações do Ministério Público do Paraná pelo então juiz primeira instância Sérgio Moro surgiram de conversas vazadas por hackers, que invadiram aplicativo de mensagens de telefones do juiz e dos procuradores. Moro, então ministro da Justiça, tentou desmerecer a denúncia, mas nunca negou o teor das conversas.

Apenas para refrescar a memória, o The Intercept Brasil passou a publicar detalhes de conversas entre o Sérgio Moro e os procuradores de Curitiba sobre procedimentos considerados indevidos por boa parte dos juristas. Como juiz, Moro não podia participar diretamente da condução do processo, uma vez que seria o mediador entre acusação e defesa dos réus no esquema de corrupção investigado pelo Ministério Público do Paraná.

Os diálogos vazados trazem também uma série de desvios de conduta em favor de políticos, empresários e instituições. Mostram parcialidade na divulgação de informações sobre o caso, cuja conotação política interferiu diretamente nas eleições de 2018, quando Bolsonaro foi eleito. Evidenciam arbitrariedades, como o cerceamento ao direito de defesa em momentos decisivos do processo, coerção de testemunhas e delatores, estratagemas jurídicos para justificar ações fora da jurisprudência, enfim, há na denúncia do The Intercept material suficiente para por em dúvida parte significativa da Operação Lava Jato, que alçou Sérgio Moro no cenário político.

No caso das revelações sobre o esquema da Operação Lava Jato, ao que tudo indica tão corrupto quanto o que estava sob investigação, os jornalistas do The Intercept e dos demais veículos de imprensa que se juntaram à cobertura também foram cuidadosos na verificação dos fatos, correlacionando citações com datas, eventos e fontes primárias. Em pouco mais de um ano, o material jornalístico traz indícios e evidências sobre os meandros de um esquema bem mais corrosivo do que os denunciados pela própria Lava Jato.

Quando o Jornalismo perde o acesso a cópias de documentos, à íntegra de depoimentos e seus contraditórios, perde também a capacidade de interpretar os fatos de maneira mais ampla e em contextos menos fragmentados. No caso da Lava Jato, declarações sem fontes e trechos de delações premiadas tiradas de contexto em benefício de “fontes ocultas” foram “compradas” pela imprensa em geral a partir de vazamentos devidamente selecionados pela própria Justiça. E o Jornalismo diário não reagiria à persuasão da propaganda jurídica da República de Curitiba se não fossem as denúncias do The Intercept.

“Rage” e Vaza Jato são expressões de um Jornalismo comprometido com fatos, com a veracidade dos argumentos, com a precisão das informações. Talvez mereçam críticas por esperar demais para revelar o descompromisso de um governo com a saúde de sua população ou se aproveitar de uma invasão a telefones privados para obter informações públicas. Só não se pode distorcer o que de fato revelam: há uma cortina de fumaça a encobrir o poder extremo de uma democracia de gabinete, em que o ódio à política é a razão das falcatruas em nome dos “cidadãos de bem”.

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