Retrato de Florença no Século XIV, no auge da peste negra

Dois jornalistas do Washington Post, Chico Harlan e Stefano Pitrelli estiveram em Florença, na Itália, para contar uma das histórias mais dramáticas da crise sanitária que varreu a Europa no Século XIV. Ainda sob os impactos da Síndrome Respiratória Aguda Grave do Coronavírus 19, o SARS-Cov 2, a cidade de pouco mais de 380 mil habitantes tem ainda amanheceres em que revela “um cenário de teatro medieval imaculado”.

Voltemos sete séculos no passado. As descrições sobre a peste bubônica oferecem um imaginário de caos e desespero. Saliva, urina, suor e escarro escuros eram um sinal de que a peste negra já tinha desenganado quem a contraísse. Tumores pela pele exalavam secreções e pus. Médicos charlatães vestiam uma paramenta macabra para tratar de doentes já sem chances de cura. Sugere-se que a doença surgiu na Ásia e infestou a Europa pelas vias do comércio. Estrangeiros foram punidos por transmitir a doença, cuja crença era a de que se propagava pelo ar.

Só em Florença, estima-se que um terço da população morreu. Nos longos anos em que a peste permaneceu viva, calcula-se entre 70 milhões e 200 milhões de mortos. A capital da Toscana infestou o lençol freático ao enterrar as vítimas, desdenhou a pandemia ao manter as atividades sociais como se nada houvesse de errado e manteve a vida cultural efervescente da época. Ao longo do tempo se percebeu que fechar fronteiras não era suficiente. Regras rígidas de convivência passaram a ser impostas pelas autoridades da época. Parte significativa da população não deu atenção.

Hoje sabe-se que a peste bubônica não é transmitida pelo ar. É uma doença bacteriana, na época “cultivada” em ratos e transmitida aos humanos por pulgas. Toda a tragédia causada por uma das mais graves pandemias da história humana tinha relação com a falta de higiene e de saneamento, a desigualdade social e econômica, o preconceito, todos fatores culturais ligados ao estilo de vida da época. A peste não poupou a nobreza. Os mais abastados viviam nas mesmas condições sanitárias, ainda que “protegidos” em castelos e gozando de privilégios.

Como afirmam os jornalistas do The Post, citando John Kelly, autor de A Grande Mortalidade: Uma História Íntima da Peste Negra, a Peste Mais Devastadora de Todos os Tempos, dos anos 1340 para cá mudou muita coisa, menos a natureza humana. Reportar a Florença de hoje tinha o objetivo de encontrar algo “reconfortante” na comparação com a mais recente pandemia, a do novo coronavírus. Não foi o que presenciaram os jornalistas.

Obra Como Estaria Picasso Nos Dias Atuais em Plena Pandemia da Covid-19, de Wanger dos Santos (Foto: divulgação)

Em recente na Lancet, prestigiada revista científica, o editor Richard Horton recuperou um termo pouco conhecido pelo senso comum para fazer um alerta sobre a Covid-19. Não se trata de uma pandemia, mas uma sindemia. Traduzindo em português, o vírus que afeta a humanidade hoje não age sozinho. Há uma série de doenças não transmissíveis que o acompanham e, inclusive, o ajudam a agravar infecções provenientes de sua “expertise”. Avancemos agora a um futuro não muito distante.

Os sinais de que a “sindemia” do novo coronavírus não deve ser tratada apenas como uma doença infectocontagiosa, ainda que isso seja necessário, estão evidentes há algum tempo. Dizem os mais espertos que se morre muito mais de outras enfermidades ou de causas mais drásticas e violentas decorrentes de problemas sociais graves. Os dados mostram que não. Mas suponhamos que isso seja verdade, que a Covid-19 não deveria estar em primeiro plano diante de todas as mazelas do mundo moderno. É isso que significa tratar a doença como sindemia.

Desigualdade social e economia de mercado sem regulação estão numa das pontas do problema. Os indícios mais evidentes disso estão na corrida por uma vacina para a recuperação da economia. Pouco se tem tratado das dificuldades de se produzir um inoculante eficaz para uma doença sobre a qual pouco se sabe. Europa e Estados Unidos veem crescer os casos outra vez, há casos de reinfecção com sintomas graves, pesquisas mostram que os danos colaterais de infecção podem aparecer em quem teve sintomas leves e uma vacina, quando houver, não terá qualquer efetividade se não acompanhada de estratégias para chegar aos grupos mais vulneráveis.

Não quer dizer que estejamos diante de uma nova peste negra. Não pelo trabalho da Ciência. São inúmeros os estudos em diferentes áreas a respeito de como acompanhar, tratar e curar a Covid-19. Não existem respostas concretas ainda, mas as incertezas estão diminuindo. O problema está, justamente, naquilo que não se associa à pandemia. Podemos falar das comorbidades como fatores de risco. Mas a absoluta maioria delas é consequência de um sistema econômico predatório e de políticas que não privilegiam a equidade de oportunidades.

Alertas sobre a diminuição de biomas, o aquecimento global, entre outros fatores relacionados ao ambiente não foram poucos nas últimas décadas. Animais que perderam seu habitat natural têm se adaptado a lugares muito próximos dos humanos, aumentando os riscos de infecção por vírus. O SARS-Cov 2, inclusive, faz parte de uma “família” desses vírus e contra a qual se tem pouca resposta imunológica ainda. A gripe ainda não tem cura, é bom lembrar.

Na sindemia de Covid-19, problemas sociais, econômicos e ambientais precisam ser tratados junto com a infecção. A pandemia de peste bubônica nas sociedades medievais da Europa e da Ásia fornece pistas essenciais para isso. Fazendo aqui uma associação bastante simplória, mas ilustrativa: os retrocessos da contemporaneidade, o pensamento medieval no tratamento de questões importantes, a ignorância diante de fatos concretos, todos são sinais de pandemias iminentes. Doenças dos corpos indivíduo e sociedade nunca estiveram dissociadas.

Publicado na Nature, uma das mais respeitadas revistas científicas do mundo, o artigo Áreas de prioridade global para restauração de ecossistemas (tradução livre) explora os resultados de um amplo estudo sobre as possibilidades ambientais e econômicas de restaurar parte da biodiversidade no planeta. Coordenada por Bernardo Strassburg, da PUC-Rio, a pesquisa realizada por mais 26 pesquisadores de 12 países oferece alternativas para atender as metas ambientais na próxima década.

Em síntese, o estudo encomendado pela Organização das Nações Unidas sustenta que a recuperação de 30% dos ecossistemas já degradados retirariam da atmosfera 49% do gás carbônico acumulado desde a Revolução Industrial. Além disso, ajudaria a salvar 71% das espécies hoje ameaçadas de extinção. A questão central no estudo é a ideia de que as prioridades na restauração das áreas degradadas combinam diferentes biomas e procuram sustentar não só a recuperação ambiental, mas os impactos econômicos e socioculturais para a região afetada.

Não se trata apenas de plantar árvores em lugares desmatados. O estudo identificou em todo o planeta 2,9 milhões de hectares de florestas, savanas, campos, zonas alagadas e desertos passíveis de restauração, levando em conta os impactos para a biodiversidade, a quantidade de carbono retirada da atmosfera e os custos financeiros e sociais dessa empreitada. Como premissa, há o entendimento de que cada bioma é importante, dependendo do que se pretende com a restauração.

De acordo com a pesquisa, as áreas prioritárias no Brasil envolvem o cerrado, o pantanal e a floresta amazônica. Mas a principal área a ser restaurada é a Mata Atlântica. Strassburg explica que a região tem grande valor ambiental quando se analisa a biodiversidade e os impactos econômicos, tanto no que diz respeito às atividades produtivas desenvolvidas ali quanto os custos para manter a diversidade do ecossistema.

Auxiliado por algoritmos de Inteligência Artificial, os pesquisadores procuraram entender como “fazer mais com menos”, um mantra da administração moderna. O estudo, entretanto, busca formas de otimizar os recursos já escassos para mitigar a degradação ambiental e investir em oportunidades para que a agricultura continue a produzir em larga escala sem oferecer riscos à vida no planeta.

As três publicações, de características distintas, revelam uma perspectiva para os momentos que se avizinham. Os jornalistas trazem um cotidiano em que as lições sobre nosso modo de vida não foram ainda levadas a sério. O editorialista reúne em seu ponto de vista o que a Ciência tem de melhor a oferecer: seu poder de correlacionar aspectos que nos ajudam a compreender os fenômenos que nos cercam. E os pesquisadores nos dão respostas claras sobre os passos que precisamos dar se quisermos mudar alguma coisa.

Para a Organização das Nações Unidas, a próxima década é a da restauração ambiental. Uma resposta do multilateralismo global aos dilemas em que nos encontramos para amenizar o sofrimento de gerações futuras diante de riscos sociais graves e de novas sindemias plenamente evitáveis. Especialmente se as lideranças que temos deixarem de pensar como se estivessem ainda na Florença medieval.

Hits: 35

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *