Ciência e imperialismo, diz o historiador Yuval Harari, sempre andaram de mãos dadas. Quando os europeus estenderam seus territórios além-mar, a curiosidade por conhecimento e as conquistas militares dividiam o mesmo convés de embarcações repletas de instrumentos científicos e bélicos. Foi essa, segundo Harari, a grande inovação dos conquistadores europeus: considerarem-se ignorantes sobre tudo o que existia em seu tempo e desejavam conquistar.

Espaços vazios passaram a ocupar desenhos cartográficos como sinal dessa ignorância. Reconhecer o desconhecido parece ter sido um impulso cognitivo relevante para o avanço da Ciência. Os espaços em branco nos mapas cartográficos simbolizavam uma necessidade de preencher um tipo diferente de imaginário, pautado nas experiências concretas e não em crenças sobre coisas que nunca se tinha visto. E tais experiências dependiam de conquistas imperais como ideologia.

Foi o financiamento das expedições marítimas responsáveis pela dominação cultural, pelo genocídio de povos originários, pela exploração econômica que devastou ecossistemas e pelas descobertas de novas riquezas que também deu vida ao que chamamos de Ciência moderna. Os espaços vazios simbolizados nos mapas cartográficos passaram a ser preenchidos, um a um, com velocidade estonteante, se comparada à existência humana, e com um grau de perversidade também inigualável até então.

Estavam todos ali, os espaços a serem preenchidos. Bastava curiosidade suficientemente justificável para que os recursos fossem mobilizados para preenchê-los. Quanto mais se descobria, mais riquezas se conseguia e mais capacidade para financiar novas expedições se adquiria. O polonês Zigmunt Bauman também reconheceu nesse conceito uma armadilha poderosa. Os espaços estão ali, mas é preciso avaliar como preenchê-los.

Os espaços vazios de Bauman têm mais relação com o desconhecimento de estruturas estranhas ao nosso modo de ver as coisas. É como se não quiséssemos mesmo ver o que faz parte do contexto em que vivemos. Lugares que evitamos por causa dos riscos à nossa segurança, aspectos da vida que não tratamos porque consideramos problemáticos ou críticos demais para a estabilidade das coisas, caminhos não seguidos pelo receio de mudar demais o ambiente em que nos acostumamos a viver, há neles uma simbologia similar a dos mapas cartográficos, mas muito mais complexa.

Podemos dizer que a Educação é uma das áreas do conhecimento humano mais afetadas hoje por expedições financiadas com propósitos bem semelhantes aos dos exploradores europeus do início da Era Moderna. Em função da pandemia, o mercado das edtechs, empresas especializadas em tecnologias educacionais digitais, ganha reconhecimento e dinheiro. O mundo digital é inteiramente novo para o ramo da Educação enquanto negócio.

A Associação Brasileira de Startups traz um levantamento impressionante: entre 2018 e 2019 o número de empreendimentos deste tipo cresceu de 364 para 449. E 70% deles oferece serviços de tecnologia para a Educação. A quarentena criou uma demanda ainda maior por serviços que conectam escolas, professores e estudantes, e diferentes modelos de negócio para atendê-la. Não deixa de ser interessante, mas é preciso avaliar os espaços vazios deixados por essas escolhas.

A questão aqui, como na época dos conquistadores marítimos europeus, é a associação das soluções para processos educativos desconhecidos com ideologias de mercado (imperialistas?). Se há um grande vazio no mapa, esse é o do “ensino híbrido”. Não são terras totalmente inexploradas, mas todas as expedições se concentram no lado digital do empreendimento, como se a Inteligência Artificial, as nuvens de infodados, as interfaces amigáveis e outras “ofertas” do tipo expressassem o que falta para o salto disruptivo na Educação.

Na verdade, até aqui, as tecnologias digitais expressam justamente o vazio no qual a Educação mergulhou. Toda a estrutura de registro e controle administrativo do sistema educacional, a primeira a ser quase que integralmente digitalizada, obedece a estilos de negócio muito conservadores para promover inovações na Educação. As expedições no universo do “ensino híbrido” são por demais mercadológicas para evidenciar algum tipo de curiosidade significativa.

Nos primórdios do sistema de ensino baseado em disciplinas científicas, construir conhecimento era um empreendimento caro, buscar informações exigia uma logística que só a curiosidade humana poderia mesmo justificar. Agora é bem diferente. O empreendimento é barato, calculado por acesso, e o volume de informações disponível é absurdamente alto para que alguma cabecinha se sinta desprovida de meios para pensar sobre qualquer coisa.

Que ninguém se iluda. Os espaços vazios estão todos aí e são tão exponenciais quanto o volume de dados que o universo digital faz circular. Acessá-lo (o volume de dados) é um exercício de escolha nunca antes necessário. O que se tem visto até aqui é a promessa de continuarmos o jogo da aprendizagem bancária, para usar o termo de Paulo Freire, através das telas de computador, tablets e celulares. Como consequência, as experiências sociais relevantes, imprenscindíveis para a construção do conhecimento, tendem a diminuir ainda mais.

Talvez seja o momento de a Ciência assumir um papel mais ativo no debate sobre as tecnologias digitais na Educação. Ainda que de mãos dadas com um novo tipo de império, o dos conglomerados comerciais, ela precisa redescobrir a curiosidade de explorar as possibilidades que se abrem, sob o risco de sucumbir aos desejos de uma indústria cada vez mais ávida por soluções miraculosas.

Uma ideologia capaz de justificar a disrupção pelas entranhas da gestão, da gerência, da administração, do mercado da Educação parece urgente. Outra economia educacional está nos espaços vazios dos mapas cartográficos que expressam as tecnologias digitais em oferta. O problema, como propõe Yuval Harari ao se referir a antigos impérios que não fizeram frente ao avanço europeu, é que tanto os tecnólogos quanto os cientistas da Educação preenchem os mapas com suas crenças.

Em síntese, os espaços vazios estão repletos de monstros marinhos e mitos sobre terras inexploradas para as quais nenhuma curiosidade de potencial valor está voltada. Que a Ciência da Educação explore as possibilidades e qualifique os ditames imperiais do “ensino híbrido”.

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