“Estupro culposo” foi o argumento jurídico usado para absolver o empresário André de Camargo Aranha, acusado de violentar sexualmente a promoter catarinense Mariana Ferrer. Para a justiça, nesse caso ocorrido em 2018 em Jurerê Internacional, não houve por parte do réu a intenção de estuprar porque ele não tinha como saber que a vítima não estava em condições de consentir a relação. Inédita, a decisão abre precedentes graves, uma vez que o tipo de crime descrito pelo promotor Thiago Carriço de Oliveira não está previsto em lei e, portanto, leva à absolvição.

Não surpreende a decisão tomada em uma cidade na qual o chefe do executivo também responde por ações similares. Gean Loureiro, atual prefeito de Florianópolis, também é acusado de estupro. Uma ex-servidora e candidata a vereadora diz ter sido forçada a manter relações sexuais por mais de uma vez no local em que ela trabalhava, a Secretaria de Turismo. O Ministério Público investiga a denúncia. O prefeito candidato à reeleição, por sua vez, não nega ter feito sexo com a ex-servidora, inclusive porque há imagens explícitas, mas diz que foi consensual.

O artifício jurídico de “estupro culposo” não está em pauta no caso de Gean Loureiro, até porque a estratégia de defesa não precisa dele. Na última pesquisa eleitoral realizada pelo Ibope depois da denúncia, o prefeito-candidato aparece com 58% dos votos e supostamente recolocado no cargo em primeiro turno. Independente do mérito e das discussões morais em torno das acusações de estupro, o caso já é suficientemente claro para sustentar falta de decoro. Qualquer servidor de carreira pego em situações bem menos graves teria sido exonerado. Era de se esperar o mesmo para um funcionário público temporário.

Essa ideia de estupro “sem intenção”, agora respaldada juridicamente, carrega um traço cultural de evidente supremacia masculina sobre as decisões de impacto social, especialmente quando se trata de arbitrariedades contra mulheres e minorias. Mas estudos recentes começam a mostrar traços também biológicos que reforçam na estrutura social brasileira a naturalização desses processos de dominação até então desmerecidos por críticos do “politicamente correto” e do feminismo.

Há nove meses, o projeto “DNA do Brasil” está analisando o genoma de brasileiros. Até agora, depois de 1.247 já sequenciados, uma descoberta ganha destaque: a miscigenação no Brasil conta com 75% de genes masculinos europeus e 70% de genes femininos africanos e indígenas. Evidentemente assimétrica, a forma como a população brasileira criou “raízes” biológicas corrobora os muitos estudos culturais que evidenciam a violência de homens brancos europeus contra mulheres escravas e dos povos originários, com requintes de violência presentes na cultura do estupro e do abuso de poder.

É claro que o estudo não surgiu para reforçar esses traços e centra toda a atenção na possibilidade de analisar perspectivas de tratamento para doenças identificadas pelo genoma, contribuir com políticas públicas adequadas aos aspectos biológicos característicos da população nas diferentes regiões do país e explorar a riqueza da diversidade genética no Brasil. De acordo com o estudo, coordenado pela pesquisadora da Universidade de São Paulo, Lygia da Veiga Pereira, essa diversidade genética encontrada na população brasileira é equivalente a encontrada no somatório de 54 populações diferentes espalhadas pelo mundo.

Robusto, o projeto “DNA do Brasil” já traz respostas importantes para questões que ainda são escamoteadas por razões ideológicas. Além de reforçar a supremacia masculina, branca e europeia no genoma populacional brasileiro, os resultados preliminares do mapeamento evidenciam também o “apagamento” dos traços indígenas da população, num reforço aos registros de extermínio das populações que aqui viviam até a ocupação territorial brasileira.

Estupro “sem intenção”, relação consensual sem a certeza do consentimento, uso da superioridade para obtenção de vantagens, construção político-ideológica de dominação pela força (física, intelectual, simbólica), são todos indícios de traços culturais também respaldados pelo genoma.

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