Não existe estupro culposo? É certo que não na sentença que absolveu o empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a promoter Mariana Ferrer. Digamos que o termo seja uma licença jornalística para o juridiquês tecnocrático e a retórica obscena de desqualificação da vítima como estratégia de defesa. Em duas palavras se conseguiu resumir o que, ainda que não de direito, aconteceu de fato. O Jornalismo transita nessa linha tênue entre a letra fria e a interpretação do que nos afeta.

Para quem leu a reportagem do Intercept Brasil, o termo “estupro culposo” não foi usado a esmo, nem mesmo foi associado literalmente à sentença. Carregado de sentido, foi cunhado a partir de argumentos que constam dos autos para justificar “falta de provas”. Em síntese, a ideia era essa mesmo: não houve como provar o “dolo” porque a vítima não se enquadrava como “vulnerável”, única possibilidade de incriminar o réu. Mariana Ferrer foi considerada incapaz de oferecer resistência por não ter discernimento do que acontecia, inocentando o acusado de qualquer culpa. Em outras palavras, a consumação do ato sexual está amparada no que a lei não prevê. Mas não há inocentes no julgamento.

Seria fácil arguir com base em julgamentos morais, como, aliás, fez o advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho. Não vamos cair na armadilha. Não há inocência aqui porque as provas estão bem diante do nariz dos nobres juristas, todos homens. O sangue da vítima, o esperma do acusado e a comprovada “conjunção carnal” em que Mariana perdeu a virgindade. A questão aqui é que, “no sentir” do juiz Rudson Marcos, os depoimentos de Mariana e da mãe não foram suficientes para configurar o ato comprovado em violência. Mas, se não houve violência no ato sexual que levou o caso a julgamento, o mesmo não se pode dizer da audiência. O estupro foi consumado na sentença e na excrescência jurídica fundamentada pelo comportamento e pela argumentação da defesa.

Essa violência tem reverberado e muito pelo país. Em São Paulo, o Tribunal de Justiça manteve decisão que atenua a pena de um homem acusado de estupro de vulnerável. O caso é ainda mais emblemático porque muda o entendimento jurídico de que, quando se trata de menores de 14 anos, qualquer ato libidinoso evidencia estupro. Para os magistrados paulistas da 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça, no entanto, quando não há “penetração” só se pode configurar “importunação sexual”.

A decisão no caso que tramita em sigilo substitui a pena de 18 anos de prisão por prestação de serviços à comunidade. O réu é acusado de molestar a sobrinha de 6 anos e o desembargador João Morenghi entendeu que passar a mão nos seios, colocar a menina no colo para se esfregar nela, “por óbvio”, não tem a gravidade do ato sexual não consentido. Notemos o “por óbvio” como destaque, porque estabelece um sentido quase que inegável na interpretação das atenuantes. Mais uma excrescência jurídica, visto que o Superior Tribunal de Justiça já manifestou outro entendimento em casos anteriores.

Juristas, é claro, podem embasar os argumentos na “letra fria da lei”, fingindo que cumprem o que está determinado nas instâncias que regem os princípios jurídicos. E tais princípios nem sempre significam Justiça. Por isso o termo “estupro culposo”, usado para designar o sentido de uma sentença, é simbólico. Ele enfatiza um certo culto ao direito à violência porque não se aplica exclusivamente ao caso de Mariana Ferrer. Também está nas entrelinhas da “importunação sexual” a vulneráveis. No caso de Mariana, não houve “vulnerabilidade” comprovada. No da menina de seis anos, a “conjunção carnal” é que não se materializou. Tecnicamente perfeito.

Reações sociais são necessárias. Não faz muito tempo o argumento de “legítima defesa da honra” para casos de feminicídio voltaram a ser aceitos nos tribunais. Talvez tenha sido um passo para escancarar essa “adormecida” jurisprudência de viés machista. Mas não podemos nos enganar: “estupro culposo” existe. Pode não estar expresso nos códigos jurídicos, mas alimenta a mentalidade de uma parcela considerável de juristas herdeiros do DNA masculino-branco-europeu presente na violenta miscigenação e nas esferas de poder do Estado brasileiro.

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