Divulgada hoje (10/11), a terceira etapa do estudo A Pandemia de Covid-19 e os profissionais de saúde pública no Brasil revela que, passados oito meses de convívio com o novo coronavírus, o enfrentamento da doença ainda é precário, tanto em função da estrutura disponível para quem está na linha de frente quanto das condições adversas de trabalho. O cansaço, o esgotamento e a saúde mental abalada são evidências de que uma parte significativa dos profissionais de saúde sofre com a falta de uma coordenação nacional e a ausência de políticas públicas eficazes de proteção.
Para os pesquisadores no Núcleo de Estudos da Burocracia, da Fundação Getúlio Vargas, a última etapa do levantamento reforça o desafio dos novos prefeitos na área de saúde a partir do ano que vem. Gabriela Lotta, coordenadora do estudo, argumenta que a tendência de aumento da demanda no sistema de saúde coloca pressão sobre a gestão pública municipal, cujo futuro depende das eleições deste mês. Isso porque um dos aspectos centrais no combate à pandemia e a doenças infecciosas de modo geral é a atenção primária à saúde, porta de entrada do Sistema Único de Saúde, sob a responsabilidade das prefeituras.
Esses profissionais continuam sendo expostos à situações de risco por falta de equipamento de proteção, por falta de testagem, por falta de orientação e falta de treinamento. E é bom a gente lembrar que, em vários lugares, esses profissionais foram proibidos de tirar férias e licença nesse período, alerta Gabriela.
Durante esses meses de enfrentamento ao novo coronavírus, grande parte dos tratamentos de saúde foi interrompido e em algum momento terá de ser retomada. As estruturas de saúde terão de dar conta dessa demanda reprimida provavelmente em uma nova fase da pandemia, independente de termos uma vacina. Levando em consideração os dados fornecidos pela terceira etapa da pesquisa com os profissionais de saúde, a falta de apoio dos governos, especialmente o federal, revela que o medo de 79% dos pesquisados se manifesta, entre outros fatores, diante da ausência de suporte do Estado e da falta de sensibilidade da administração pública em relação aos cuidados com a prevenção.
Em parceria com a Fiocruz e a Rede Covid-19 Humanidades, o Núcleo de Estudos da Burocracia oferece um retrato qualificado do cenário no qual os profissionais de saúde no Brasil estão inseridos. O valor estatístico do trabalho não está na amostragem propriamente dita, visto que não há como fazer generalizações a partir das entrevistas respondidas de forma voluntária e que não atingiu a mesma população amostral nas três etapas da pesquisa.
Essa coleta cobriu o período de 15 de setembro a 15 de outubro. Nós não podemos generalizar os dados porque eles não foram obtidos de maneira aleatória, é o que a gente chama de amostra por conveniência, ou seja, respondeu quem teve acesso ao questionário e interesse na pesquisa. Mas, ainda assim, como ela conseguiu cobrir o território nacional e tem uma boa representatividade numérica dos vários profissionais presentes na saúde dos estados, a gente consegue ter uma boa abrangência de cobertura e boa representatividade desses dados, esclarece Gabriela.
Informações desencontradas e negligência na condução do avanço da doença impactam no combate à pandemia no Brasil e, em termos técnicos, têm corrompido a confiança em argumentos outrora confiáveis. Além da desinformação, que também influencia os que estão na linha de frente, as autoridades políticas e sanitárias têm se comprometido pouco com os reais problemas que enfrentamos. Mesmo com grau elevado de confiança nos métodos científicos, um terço dos profissionais entrevistados na pesquisa manifesta a crença em medicamentos ineficazes e tratamentos sem comprovação. Uma surpresa para os investigadores e indício de que a politização da crise sanitária tem um alcance bem mais amplo do que se imagina.

Episódio recente da típica insensibilidade do poder público brasileiro quanto aos dilemas vividos pela população, a suspensão dos testes da vacina CoronaVac pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, acrescenta uma boa pitada de polarização ao já conturbado caldeirão epidemiológico no qual o novo coronavírus se prolifera. Não pela suspensão em si, algo que os especialistas consideram comum, mas pela forma como a decisão ganhou visibilidade e abriu espaço para embates políticos que mexem com as campanhas eleitorais em curso.
A história é até bem simples, mas recheada de elementos hilários e pouco esclarecedores. Do ponto de vista técnico-científico, a decisão da Anvisa está de acordo com os protocolos sanitários e correspondem aos procedimentos internacionais. Diante de “eventos adversos graves”, os testes precisam ser suspensos até que uma comissão independente apure a relação do que ocorreu com a aplicação da vacina. O problema nesse caso é outro e bem mais grave, na medida em que diz afeta a transparência nas informações sobre a capacidade de imunização das vacinas em análise no momento.
De acordo com os representantes da Anvisa, em entrevista coletiva concedida hoje (10/11), o Instituto Butantan não prestou os devidos esclarecimentos sobre a “não causalidade” da morte de um dos voluntários nos testes da CoronaVac. Uma linha de tempo foi usada na coletiva para “ilustrar” os argumentos: entre a morte confirmada, em 29/10, e a suspensão dos testes, em 09/11, uma sequência de “eventos graves” de outra natureza gerou incertezas, estimulou teorias da conspiração e gerou ambiente para um pronunciamento presidencial coerente com as inconsequentes políticas sanitárias do Governo Federal.
O presidente Jair Bolsonaro chegou a postar nas redes sociais (em terceira pessoa) que tinha razão sobre a ineficiência da CoronaVac. Usando informações genéricas e descontextualizadas, Bolsonaro foi criticado inclusive por aliados ao se posicionar sem informações concretas a respeito. Fato é que a morte de um dos voluntários, ocorrida 25 dias depois da aplicação do imunizante, está sendo investigada como suicídio, o que nada tem a ver com a vacina. Como agência reguladora, a Anvisa não procurou obter mais detalhes a respeito dos fatos antes de divulgar oficialmente a suspensão dos testes. Antonio Torres, diretor-presidente, justifica que era preciso tomar uma decisão rápida na falta de informações. O Instituto Butantan chegou a relatar na base de dados da Anvisa o que aconteceu, mas por causa de uma invasão de hackers dias antes, o sistema estava desativado e “a informação não chegou”.
Mesmo sem noções mais precisas sobre o “evento adverso”, e isso foi assumido na entrevista coletiva, a Anvisa replicou a falta de informações na justificativa da decisão, também comunicada ao Instituto Butantan via ofício e e-mail na mesma noite da suspensão. O que deveria ser encarado como situação corriqueira em testes vacinais acabou ampliando a desconfiança no imunizante, menosprezado por seguidores da presidência da República por causa da identidade chinesa na tecnologia usada na produção. Na verdade, a decisão suspende a inclusão de novos voluntários até que fique comprovada a “não causalidade” do “evento adverso grave” com os testes. Os estudos continuam, não foram interrompidos, como a própria Anvisa esclareceu.
Sem uma vacina, o medo relatado pela absoluta maioria dos entrevistados na pesquisa sobre saúde pública no Brasil não tem como ser evitado. Ao contrário da população em geral, esses profissionais estão em contato permanente com o vírus. Tanto que 94,5% deles já teve colegas contaminados. Sem descanso nem alento sobre as possibilidades de frear a pandemia, quem está na linha de frente não conta, de modo geral, com uma estrutura mínima de trabalho, tampouco com a sensibilidade de quem deveria estar à frente de uma perspectiva de solução.
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