Dinâmicas excludentes se inscrevem em dimensões de violência muitas vezes sutis. Acostumados a reagir em casos extremos de violência racial, tendemos a não dar importância quando as agressões, em níveis menos explícitos, oferecem justificativas que parecem aceitáveis à luz de uma suposta normalidade ou casualidade.

Os assassinatos de George Floyd nos Estados Unidos e João Alberto no Brasil dizem muito sobre a desigualdade racial e uma certa hierarquia cultural eurocêntrica. Mas as histórias de violência contra povos não brancos se multiplicam em níveis nos quais os excluídos têm de reagir sozinhos, muitas vezes sem apoio social.

Aqui temos duas dessas histórias, nas quais o Jornalismo e a Publicidade são protagonistas. Uma mostra como o mundo “enxerga” um continente estigmatizado por uma economia escravagista, adaptada a valores ainda excludentes mesmo depois do fim da escravidão. A outra evidencia que as formas de convivência nas escolas não se resumem a conteúdos e narrativas de inclusão.

Para o fotojornalista envolvido na primeira história faltou tempo para pensar no melhor enquadramento. Para a agência de publicidade, na segunda, tudo não passou de uma questão de espaço. E as dimensões de violência driblam nossa capacidade de consciência.

Como a sueca Greta Thunberg, já conhecida da imprensa mundial, Loukina Tille, Luisa Neubauer, Isabelle Axelsson e Vanessa Nakate são ativistas climáticas. Vanessa é a “única de cor”, na definição da editora da Associated Press Sally Buzbee, em uma foto tirada durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, em janeiro deste ano.

O prédio enquadrado ao fundo foi usado como justificativa para tirar da imagem a ativista de 23 anos e natural de Uganda. Em suas redes sociais, Vanessa revela que foi uma forma amarga de descobrir o racismo. Para ela, a edição apagou um continente inteiro da luta por políticas ambientais de preservação e equidade.

As explicações não são lá muito convincentes. O fotógrafo tinha um prazo apertado e, ao recortar a foto, sua única intenção foi tirar um “elemento perturbador” na estética da imagem. No caso, o prédio que servia de fundo para Vanessa. Para corroborar, a Associated Press substituiu a foto editada pela original, como forma de se desculpar oficialmente pelo “incidente”.

De fato, se pode conjecturar a ausência de “má intenção”. Mas também se pode supor que, se fosse Greta enquadrada com o prédio ao fundo, o “elemento perturbador” passasse despercebido ou nem fosse levado em consideração, dada a importância da informação. É possível até que um outro ângulo fosse buscado antes do registro, uma vez que Greta, originalmente no centro da foto, tem sido também o centro das atenções quando se trata de ativismo climático. Não há como justificar naturalidade aqui.

Seria o caso de aceitar que estamos diante de um apagamento cultural ao qual testemunhamos sem reações significativas. Assim como a ativista africana e “de cor” (as brancas não têm cor?) foi apagada e com ela todo um continente, ninguém na estrutura de fluxo da informação foi capaz de analisar com mais cuidado o juízo estético (ideológico?) na concepção da mensagem oferecida ao mundo.

Como em quaisquer situações de desigualdade, especialmente a étnico- racial, a vítima precisa se expor e denunciar o próprio sofrimento. E não se faz isso sem dispor de canais que permitam a reverberação do que dizem. Vanessa Nakate, pela sua postura, precisou passar por uma situação inesperada para reforçar as conexões que o ativismo climático tem com outras lutas também oriundas da negação da História.

“Você não apagou apenas uma foto. Você apagou um continente. Mas eu estou mais forte do que nunca”. Vanessa Nakate manifesta seu inconformismo com a violência a que foi submetida

Justificativa semelhante à da Associated Press foi dada para um caso semelhante no Brasil. Uma peça publicitária publicada no Instagram do Colégio Domus Sapiens, de Jundiaí (SP), sobrepõe o texto “Importante na escola não é só estudar, é também criar laços de amizade e convivência – Paulo Freire” à imagem de uma menina negra de 10 anos, fotografada com outras três colegas brancas, usadas como destaque.

As explicações também não soam convincentes. A peça faz parte de um conjunto de 41 usadas na campanha em que a agência contratada pela escola usa o lado direito para destacar os textos. De acordo com o colégio, várias outras peças também usaram caixas de texto para sobrepor a imagem de estudantes, inclusive brancos. Mas em uma rápida olhada no conjunto de informações postadas no Instagram não se encontra nada parecido.

Seguindo “critérios estéticos’, este caso também revela ausência de equidade racial na concepção da mensagem que se pretende divulgar. A foto traz as três meninas brancas de rostos quase colados, visualmente concentradas mais à esquerda, com espaço suficiente para não serem sobrepostas pelo quadro de textos. Também não há como justificar naturalidade aqui. Em São Paulo, um em cada dez alunos são negros em escolas particulares.

Para a família da menina apagada da “convivência” social destacada na campanha, o caso é de racismo. Um boletim de ocorrência foi registrado e um inquérito vai apurar se houve crime. Foram os parentes que notificaram o colégio, que substituiu a peça com a foto sem sobreposições.

Peça publicitária do Colégio Domus Sapiens substituída depois da denúncia de racismo. À esquerda, a peça esconde a menina negra da campanha (foto de divulgação no Instagram)

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