Ana Lúcia Martins mal tinha começado a comemorar o ingresso histórico na Câmara de Vereadores de Joinville quando teve a conta em mídias sociais invadida. Candidata pelo Partido dos Trabalhadores, negra, feminista e ativista de movimentos sociais, a professora aposentada foi a sétima mais votada. Ela tinha consciência de que as adversidades como parlamentar estavam só começando. Não esperava que fosse tão cedo e de forma tão agressiva.
A cerca de 130 quilômetros dali, outra professora negra, ativista e candidata pelo Partido dos Trabalhadores era felicitada pela eleição. Nunca antes na história da Câmara Municipal de Curitiba uma mulher negra ocupou uma cadeira. Carol Dartora teve mais tempo que a companheira Ana Lúcia para saborear o momento. Dois domingos depois do pleito que a conduziu ao legislativo municipal da capital paranaense, as mesmas ameaças chegaram.
Um grupo denominado “Juventude Hitlerista” supostamente “assina” as primeiras mensagens dirigidas a Ana Lúcia pelas redes sociais. Essa, aliás, é uma das linhas de investigação assumidas pela polícia. As ofensas chegaram justamente entre o dia do resultado histórico para a vereadora joinvilense e o da Consciência Negra, comemorado na mesma semana. Imediatamente, manifestações de apoio se multiplicaram. Alisson Júlio, primeiro cadeirante na câmara e vereador mais votado, também virou alvo dos ataques ao se solidarizar com Ana Lúcia.
Único suspeito a ser interrogado até agora, um rapaz cujo nome não foi revelado tem diagnóstico de esquizofrenia. Os depoimentos colhidos pela delegada Cláudia Gonçalves, da Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso, sugerem que o suspeito pode ter agido sob orientação de outras pessoas. Ele passa a maior parte do tempo em redes sociais e jogos. Chegou a engolir um chip de celular, segundo os familiares, na semana em que ocorreram as ameaças e estava meio agitado. A delegada, entretanto, não descarta a possibilidade de uma “conexão intermunicipal”.
Em Curitiba, apesar do pequeno delay, as circunstâncias são bastante semelhantes. Todas as evidências dão conta de que as ameaças são orquestradas. Os termos racistas e xenofóbicos são citados em contextos muito similares, quando não adotados em textos cuja diferença está no remetente, no nome das vítimas e seus endereços. Toda a construção é exatamente igual e faz parte de um contexto em que as mensagens são apenas a ponta do iceberg.

A situação vivida pelas vereadoras eleitas pelo PT poderiam fazer supor que há uma intolerância mais partidária do que racial. Mas não é esse o caso. A mesma ameaça, com o mesmo texto, foi dirigida à prefeita eleita de Bauru, município do interior paulista, Suéllen Rosin. Ela também é negra, mas pertence ao Patriota, partido do espectro oposto no cenário político. Não há como negligenciar o fato de que as candidaturas de autodeclarados negros chegaram a quase metade do total neste ano e a pandemia acabou confinando a campanha eleitoral nas mídias sociais.
Estudo preliminar realizado pelo Instituto Marielle Franco se propôs a categorizar os tipos de violência política mais sofridas por mulheres negras. Não por acaso, a violência virtual foi a mais comum. Oito de cada dez mulheres negras candidatas relatam ter sido vítimas de discursos machistas, misóginos e racistas nas redes sociais ou tiveram reuniões e lives invadidas. Seis em cada dez sofreram ofensas por causa da atividade política, da crença religiosa ou do local de origem, geralmente periferias de centros urbanos.
Em sua maioria, os agressores não foram identificados. Mas estão entre os conhecidos, candidatos ou grupos de militantes adversários, além de grupos identificados político-ideologicamente, como os “hitleristas” de Joinville. Algumas das candidatas entrevistadas, chegaram a relatar agressões de militantes do próprio partido, evidenciando a desigualdade nas relações de poder que sustentam os representantes políticos nos processos eleitorais. Os dados escancaram o racismo estrutural e o modelo cultural que não oferece as mesmas oportunidades a todos os estratos sociais.
No momento em que se denuncia mil dias sem respostas para o assassinato brutal de Marielle Franco, cujo nome simboliza a resistência contra diversas violências em franco crescimento no país, é preciso levar em conta que os fatos são mais do que suficientes para contradizer a negação do racismo, sustentada por uma falsa crença de miscigenação harmoniosa no Brasil. Além disso, as medidas de isolamento social nos trouxeram outros agravantes para reforçar as desigualdades. Como alerta o escritor, artista e designer italiano Silvio Lorusso, os extremistas encontraram na internet o lugar sombrio de que precisavam para se reunir e perturbar os outros.
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