Entre seis e onze de janeiro, a Organização Não Governamental Repórter Brasil foi alvo de ataques digitais e uma tentativa de invasão à sede, em São Paulo. As ações violentas têm por objetivo retirar do ar reportagens produzidas pela entidade, com 20 anos de atuação. Desde o início deste ano, além do relevante trabalho nas áreas de jornalismo, pesquisa e educação, a Repórter Brasil tem depositado energia para manter de pé a estrutura de suporte digital e denunciar às autoridades um tipo de violência bastante comum na atualidade.
De acordo com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a ABRAJI, esse tipo de assédio, chamado de “restrições à internet”, teve até novembro de 2020 um crescimento de 140% no número de casos em comparação a todo o ano anterior. Contra jornalistas, os ataques triplicaram. É um cenário que ajuda a sedimentar um certo desprezo pela verificação de fatos na disseminação de informações com viés ideológico. Os principais alvos de intimidação são os veículos independentes, o que sugere uma certa orquestração. Mas não há como saber, sem investigações coordenadas.
Recentemente, o fundador e ex-editor do Wikileaks, Julian Assenge, obteve uma vitória parcial nos tribunais de Londres, ao ter negada sua extradição para os Estados Unidos. Acusado de espionagem por ter revelado documentos classificados como secretos pelo governo estadunidense, Assenge é considerado um hacker, não um jornalista. O vazamento das informações, entretanto, seguiu princípios de relevância e interesse público, adotou critérios de apuração e checagem de fontes, foi sustentado por técnicas jornalísticas que conferem veracidade e autenticidade aos fatos.
Assenge tem merecido especial atenção, uma vez que a sentença favorável a não extradição mantém pressupostos que põem em xeque a liberdade de expressão, especialmente a de imprensa. A lei de espionagem, sob a qual o fundador do Wikileaks está sujeito, é de 1917. E sua aplicação neste caso sugere que a revelação de evidências que denunciem ações arbitrárias da administração central nos Estados Unidos se estenderia ao Jornalismo de forma geral. É preciso levar em conta que estamos presenciando formas sutis e institucionais de repressão e controle nas democracias ocidentais.
Contextos voláteis
Por princípio, inclusive jurídico, a liberdade de expressão é assegurada em quaisquer circunstâncias, desde que não se sobreponha a outros direitos fundamentais. As palavras e as ações têm o peso que o contexto impõe. Donald Trump passou os quatro anos de seu controverso governo usando uma estratégia que a nova direita consolidou em termos populares. Atacou instituições, fomentou a desinformação desmentindo tudo o que era crítica à sua gestão, incitou seguidores, entre tantas outras formas de usar a seu favor o peso das palavras, inventando contextos apropriados aos próprios interesses.
A fraude eleitoral alardeada por ele e boa parte dos membros do Partido Republicano, sem qualquer sustentação, forneceu todas as munições necessárias para a invasão ao Capitólio, no dia em que o adversário Joe Biden seria confirmado o novo presidente eleito nos Estados Unidos. Cinco mortos e 90 presos deram à crise institucional uma perversidade que pode custar muito mais a Trump do que se supunha. Berço da democracia liberal e capitalista, os Estados Unidos viram-se em situação semelhante a dos países que sofrem com suas políticas intervencionistas.
Donald Trump teve aprovado pela segunda vez na Câmara seu impedimento. Desta vez com votos de republicanos, que uniram-se às críticas ao desempenho errático do governo. Em uma semana Trump deixa o cargo, mas o processo deve seguir ao Senado. Está em jogo a possibilidade de ele se tornar inelegível, visto que os políticos estadunidenses, em sua maioria, consideraram suas incitações pelas mídias sociais um estopim para as ações violentas de seus apoiadores. As empresas responsáveis pelas mídias sociais, reativamente, suspenderam suas contas como forma de punição pela conduta do presidente em sua melancólica despedida.
Trump se considera censurado. Seus apoiadores, incluindo os brasileiros, manifestam repulsa pela imposição reconhecida como uma “orquestração esquerdista” para silenciar os “ideais conservadores” autoatribuídos à nova direita. Mas esse não é um caso típico de censura, uma vez que é resultado das consequências da liberdade de expressão. O peso das palavras de Trump em um contexto deliberadamente inventado para justificar as próprias ideias está agora sobre os próprios ombros.
Decisões cuidadosas
São gritantes as diferenças entre os casos de Julian Assenge e Donald Trump no contexto de violência digital aos serviços de informação sobre o nosso cotidiano. Mas seus efeitos, sutis. O Wikileaks é uma espécie de marco nesse cenário contemporâneo de hackeamento como necessidade para se chegar a informações cujo sigilo esconde estruturas de poder baseadas em repressão e controle. Donald Trump, por outro lado, é resultado de uma estratégia de propaganda ideológica baseada quase que exclusivamente na construção de “comunidades” e “identidades” sobre as quais se sustentam credos e valores retrógrados compartilhados globalmente. Contudo, quaisquer tentativas de silenciá-los estão no limiar da repressão.
Assenge é réu por desvendar políticas nada democráticas e denunciar a influência de aparatos de vigilância sobre a vida das pessoas em diferentes lugares do mundo. Ele é preso político. Já Trump é um mentiroso compulsivo. Sua conduta o levou ao lugar que ele mesmo edificou ao adotar estratégias de reforço à desinformação e ao diálogo com fundamentalistas e extremistas. Não foi reeleito, como na tradição presidencial dos Estados Unidos, e pode se tornar inelegível como resultado de sua conduta enquanto líder.
A questão de fundo está nas escolhas a serem feitas para “julgar” a ambos. Em momentos como agora é preciso cautela para se evitar excessos que nos levem a um cenário de repressões aceitas como necessárias e sistemas de controle supostamente criados em nosso benefício. Jornalistas e veículos de comunicação independentes vêm sofrendo com o aumento de violência deliberada à liberdade de expressão e de imprensa. Mas as gigantes da tecnologia, donas das informações que espontaneamente compartilhamos, parecem estar no controle do que pode ou não ser disseminado sem o necessário debate sobre a jurisprudência de suas decisões. Assenge e Trump não estão no mesmo barco, mas reforçam extremos nos quais o pêndulo da democracia oscila.
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