Diante da mudança de protocolos de segurança sanitária, os pais de um determinado estudante entram enfurecidos na sala da direção da escola. Mudaram as regras de saúde pública por causa do risco potencial de contágio da Covid-19, mas a família não compreende. “Tem ônibus lotado, praias lotadas, tá quase tudo normal lá fora”, argumenta o pai. Por que, então, a escola impõe medidas tão rígidas? “Vocês não podem mudar as regras do dia para a noite, a gente precisa de tempo para gerenciar a situação”.

A cena é hipotética, mas inspirada em fatos. Em Santa Catarina, na segunda-feira de Carnaval, o governador Carlos Moisés assinou a revogação de um decreto que determinava a presença de apenas metade dos estudantes matriculados por turno nas escolas das redes pública e privada, quando a região de saúde na qual elas se situam apresentam potencial de risco gravíssimo. De acordo com o mapa de risco, essa é a situação de doze das 16 regiões no estado nesta semana. Com o novo decreto, respeitadas as regras de distanciamento, as escolas podem acomodar quantos estudantes couberem no espaço de aula.

Na prática, é uma mudança radical. Ainda falando hipoteticamente, pensemos numa escola com cem alunos matriculados por turno. Seguindo o decreto anterior, em caso de potencial de risco gravíssimo, apenas 50 estudantes poderiam comparecer às aulas. Os demais, teriam de ser atendidos remotamente, mesmo tendo salas de aula disponíveis para um grupo maior de estudantes no presencial, dentro dos limites de segurança.

Façamos uma conta simples: digamos que essa escola com cem matriculados por turno possui dez salas de aula. Para ocupá-las integralmente, as carteiras têm de ser organizadas com 1,5m de distância entre os estudantes e dois metros entre a primeira fila de carteiras e o professor. Terminada a organização do espaço dentro das normas, a escola consegue dez lugares por sala. São, portanto, cem lugares disponíveis, somando-se todas as salas. O decreto atual permite que os cem alunos possam voltar às aulas presenciais nos dois turnos. Antes, mesmo com toda a estrutura preparada, só 50 poderiam assistir aulas presenciais. Os demais teriam de assisti-las remotamente.

Para o retorno às aulas programado para hoje (18/02) na rede pública, um outro cenário.

E os protocolos de prevenção?

Por trás da revogação do decreto está a pressão, especialmente das instituições particulares de ensino, para o retorno das atividades o mais próximo possível da normalidade. Também existem argumentos médicos enfatizando o baixo risco de contágio nos ambientes escolares, desde que respeitadas as medidas de higiene, distanciamento e uso de equipamentos de proteção. Para o pediatra Daniel Becker, um dos especialistas que assinam manifesto em favor da volta às aulas, “a escola, quando segue os protocolos de prevenção, é o lugar mais seguro onde uma criança pode estar agora”.

De fato, não há como garantir. Como em qualquer situação sobre a qual pouco se sabe, a Ciência encontra respostas controversas. Grupos de pesquisa têm alertado que a abertura das instituições de ensino depende de medidas de proteção, testagem e monitoramento de surtos. E parte significativa dos estudos sugere que as escolas não são grandes focos. O mesmo Becker salienta que a melhor maneira de mantê-las funcionando é o que ele chama de “pacto” entre as instituições de ensino e as famílias. Para que os protocolos de segurança tenham algum efeito, os responsáveis pelos estudantes também precisam mostrar que a pandemia exige os mesmos cuidados fora do ambiente escolar.

No ano passado, a pandemia foi o estopim para que cerca de 4 milhões de brasileiros abandonassem os estudos. São oito em cada cem, na faixa dos 6 aos 34 anos. Desnecessário dizer que as maiores taxas estão no ensino médio e no ensino superior, dados os problemas estruturais do sistema educacional nesses níveis de escolarização. Além disso, atesta-se também um atraso no processo de aprendizagem que vem aumentando acentuadamente a desigualdade no país. Os mais pobres se distanciam cada vez mais das oportunidades oferecidas a quem tem boa formação. Parte dessa realidade se materializa na falta de estrutura da rede pública, hoje responsável por cerca de 80% das matrículas na educação básica, para incluir estudantes no ensino remoto, única alternativa proposta até agora como solução. Isso sem falar nas vulnerabilidades socioculturais históricas às quais boa parte da população jovem está submetida, em função das condições econômicas.

A rede privada enfrenta outros tipos de problema, tão sérios quanto. Mesmo correndo o risco de fazer generalizações, se pode dizer que o que pauta a relação dos pais com as escolas particulares é o consumo. O “serviço” escolar, garantido como “essencial” pelos legisladores catarinenses durante a pandemia, é como qualquer outro. Compra-se instrução e conteúdo, de preferência que atendam às exigências ideológicas e às limitações epistemológicas do momento. Essa relação de consumo movimenta um mercado pautado na quantidade de matrículas e, muitas vezes, conduzido pelas instituições de ensino para atender às preferências dos “clientes”.

Protocolos de prevenção podem ser um empecilho.

A pandemia tem de estar no currículo!

Seguramente, grande parte dos responsáveis pela educação dos pequenos não compreendem. O currículo escolar explicita os conteúdos, atende às determinações legais e às diretrizes educacionais, propõe como cada escola organiza a aprendizagem, estabelece métodos, orienta o ensino, enfim, está tudo em bons projetos pedagógicos. Mas ele não explicita o respeito à convivência com as diferenças, o respeito a pontos de vista contrários, o respeito à diversidade cultural, há muitas coisas ocultas no currículo. Inclusive a capacidade de compreensão dos professores e gestores – sim, não coloquemos a responsabilidade sobre os ombros exclusivamente dos pais – quanto aos problemas atuais.

Conteúdos estão inscritos na tradição científica, se baseiam em argumentos consolidados pelo consenso de estudiosos nas mais diferentes áreas do conhecimento. São também escolhidos arbitrariamente quando se determina o que e quando cada um de nós tem condições de aprender. Na História do Brasil, por exemplo, as narrativas que contam a formação de nossa gente oferecem interpretações diversificadas, fatos mal explicados ou melhor analisados com o tempo. São as escolhas do que e como contar essa história que sustentam os conteúdos de um currículo. Para todas as disciplinas é assim. A escola deveria ser um lugar de crítica, de autonomia para desenvolver nos estudantes a capacidade de sustentar argumentos com base em fatos, mesmo que estes contradigam crenças. As grandes revoluções na educação deste século têm por base a preparação de pessoas que consigam viver em um cenário de incertezas e de cooperação. São muito mais metodológicas do que tecnológicas, muito mais formativas do que conteudistas.

Tempos de pandemia não são novos. São recorrentes na trajetória humana. O problema é como enfrentamos tempos como este. A educação não foi capaz de fundamentar as razões para o cuidado, não foi capaz de subsidiar a compreensão sobre como lidar com a saúde coletiva, não foi capaz de orientar para o respeito aos direitos de todos. E a escola, cuja principal missão é contribuir para o desenvolvimento humano, vive o dilema de manter-se enquanto instituição que conserva o conhecimento construído pela humanidade e entende seu tempo, enquanto tenta promover a formação de pessoas mais conscientes dos problemas que nos afetam a todos. Mas enfrentamos a pandemia de hoje como enfrentamos às de ontem.

As escolas podem ser, como propõe o psiquiatra Daniel Becker, o lugar mais seguro para uma criança estar hoje. Se levarmos em conta que na maioria dos lares brasileiros o cuidado com as medidas de restrição é inócuo, seja por ignorância, falta de recursos ou mesmo por opção, talvez os especialistas tenham razão. Mas está faltando algo aí: a escola também é lugar de aprender a viver esse momento, discutir alternativas, compreender nossas limitações. E solidarizar-se com os que têm mais fragilidade.

Quando pais e familiares posicionam-se diante da direção da escola como quem pensa a educação pelo consumo para relativizar medidas de saúde pública, o problema não está na instituição de ensino que obedece as medidas sanitárias para manter suas atividades. O sintoma é mais grave. A sociedade está dando um sinal de que, por mais cuidados que se tome no ambiente escolar, os riscos potenciais estão do lado de fora. As escolas talvez não sejam focos de novos surtos, afinal. Não é de hoje que elas sofrem com a deseducação e a desinformação de grande parcela da sociedade, que pode até ter boa instrução, mas é definitivamente mal formada.

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