Sábado ensolarado, verão escaldante em Palhoça. O laboratório multimídia do curso de Jornalismo na Universidade do Sul de Santa Catarina recebe a turma de 20 alunos para uma discussão sobre o futuro. É um tema tão árduo quanto a disposição de priorizar a manhã de aprendizado em detrimento das convidativas opções de praia na região da Grande Florianópolis. Discutimos sobre os sinais que o presente nos revela a respeito das decisões políticas e determinações econômicas para o amanhã. Não se tratava, claro, de um exercício de adivinhação. Ao contrário, pensávamos as perspectivas para uma profissão que tem na inteligência uma ferramenta indispensável.
Entre vários argumentos interessantes, Watson surge como fio condutor no debate. Sistema de Inteligência Artificial da IBM, trata-se de uma experiência – antiga, diga-se, para o universo digital – de uso de redes neurais com o propósito de aprimorar aplicações para a computação cognitiva. Em síntese, Watson é capaz de aprender a partir de informações disponíveis no intrincado mundo dos bits e adquirir um certo tipo de consciência sem estar aprisionado a um corpo. Mais que isso, consegue dar respostas a quaisquer questionamentos sobre temas complexos e até abstratos. Chegou a ser usado para fornecer informações sobre obras expostas no Museu de Artes de São Paulo. Os usuários precisavam apenas de um celular como interface.
Falávamos de um tipo de inteligência dependente de dispositivos de uso cotidiano para estabelecer “diálogo” conosco. Um tipo de inteligência chamada de artificial, mas reconhecida por alguns estudiosos como “não biológica”. O raciocínio por trás dessa ideia pressupõe uma a evolução adaptativa de diferentes espécies “inteligentes” diante das adversidades para sobreviver. A natureza de Watson, claro, não é biológica. Tampouco, nessa concepção, um artifício. A computação cognitiva é pensada como um tipo de consciência não biológica, cuja habilidade de autopreservação constitui parte de sua existência, ainda que dependente da ação humana em interfaces com o mundo “natural”.
Outras experiências têm avançado nesse cenário. Lexi é um robô usado para auxiliar projetos de pesquisa. Sophia, recentemente, imergiu na arte para criar peças baseadas na composição de um artista de carne e osso. E aqui já estamos falando de interfaces com um certo grau de independência para aprender por si mesmas a partir da própria experiência com o mundo “físico”. A “ação”, nesses casos, não é exclusivamente humana. Pesemos o seguinte: quando a computação cognitiva assume a “consciência” humanoide, a interação assume duas vias. De um lado estamos nós, humanos, no “controle” da interface e do propósito da experiência. De outro, os humanoides com sua concepção de aprendizado, sobre a qual sabemos quase nada.
Não sejamos hipócritas de fomentar distopias tampouco fazer afirmações apocalípticas sobre o embate entre humanos e máquinas. Não se trata disso. O preâmbulo tem objetivos menos eloquentes, ainda que bem importantes. A questão é: diante da necessidade do distanciamento físico e das medidas sanitárias urgentes para conter a pandemia do coronavírus; dos investimentos em um certo tipo de cognição não biológica para promover a aprendizagem; das decisões quanto a políticas públicas focadas exclusivamente em tecnologias educacionais; e das dificuldades humanas em lidar com as incertezas do contexto pós-pandêmico, qual o futuro da educação?
Robotização do ensino
Presencial ou à distância, baseado em tecnologia digital ou analógica, proposto a partir de teorias ou práticas, propedêutico ou aplicado, de cunho genérico ou customizado, o ensino nunca foi estanque nem uniforme. Mas a educação tem de estar inserida em seu tempo. Independente do “modelo de negócios”, dos métodos e conteúdos que a constituem, dos planos elaborados para delinear a formação das pessoas que a ela aderem, a educação tem muito mais a oferecer do que instruções e perspectivas de ocupação econômica. Para dar conta da mecanização e do rigor com a cronologia dos processos produtivos, as escolas reproduziram os ambientes industriais e ajudaram a formar peças de uma engrenagem complexa, sem consciência de sua posição ou importância social. Foi-se esse tempo.
Quando Sabine Seufert se associa à Lexi para oferecer a um auditório repleto de estudantes conexões com a ciência, o ensino robotizado se formaliza em dimensões ainda impensadas. Professora de Gestão de Inovações Educacionais na Universidade de St. Gallen na Suíça, Sabine investiga o potencial desses robôs para o desenvolvimento da aprendizagem. Na prática, há incertezas sobre o futuro dos humanoides como agentes na formação humana. Em tese, ou melhor, em teoria, os resultados podem ser promissores. Certo mesmo é que as decisões sobre o uso desses recursos e a aplicação dos investimentos neles não se discute mais. Os robôs são uma realidade nas “salas de aula”, mesmo que as incertezas se sobreponham às concepções de educação, sempre nobres e cristalizadas nos cânones de sua gênese.
Robôs humanoides são a instância mais caricata do ensino híbrido no cenário atual. À exemplo do Watson, são inúmeros os dispositivos de inteligência artificial usados para conduzir roteiros de estudo, direcionar exercícios para desenvolver habilidades avaliadas como insuficientes, organizar conteúdos de acordo com as dificuldades de memorização e dar todo o tipo de suporte para o processo de aprendizado, seja ele qual for. Em termos de computação cognitiva, não se pode afirmar que o processo é mecânico. Ao contrário, o termo agora é “exponencial”. A robotização do ensino eleva a aprendizagem a uma potência inimaginada porque, propõem seus entusiastas, fornece experiências para além do imediato, da limitação do tempo e do espaço, do corpo, de todas as amarras que impedem o “vôo” do conhecimento. Cada um será capaz de fazer seu próprio currículo, a partir do que deseja. Essa é a terra prometida.
A realidade não mais se molda a partir das engrenagens complexas da mecanização industrial. Ela pode ser virtual, pode ser aumentada, pode ser exponencialmente rica em detalhes aos quais nunca demos atenção. Quando sobrepomos informações digitais à percepção do mundo físico corremos sérios riscos: o que chamamos de “realidade aumentada” pode, na verdade, diminuir os efeitos necessários da experiência imediata para a aprendizagem. Um aplicativo de celular que nos oferece a direção correta para um restaurante enquanto caminhamos por uma cidade desconhecida esconde mais do que revela. É uma percepção por demais objetiva que “apaga” o afeto de estar em um lugar a ser descoberto. E conhecimento é descoberta. Robotizar o ensino é como sobrepor interfaces tecnológicas às analogias que o mundo físico nos oferece para apreender a realidade. E a realidade é o que fazemos dela.
Hibridização da aprendizagem
No mercado educacional, a L.E.K. é uma organização que presta consultoria a investidores e operadores. Em relatório recente, explora os desafios para quem deseja entrar no competitivo universo da educação privada. Entre os aspectos mais relevantes está o uso de tecnologias para “personalizar” a aprendizagem. No Brasil, segundo a análise da L.E.K., a aplicação de recursos financeiros em soluções dessa natureza vem crescendo ao longo dos últimos anos. Quatro ou cinco escolas particulares, de cada dez, já utilizam ferramentas digitais de treinamento para professores e sistematização de ensino, algumas já baseadas em algoritmos para identificar dificuldades de aprendizado e aplicar soluções individualizadas para que os estudantes as superem. Como diz o relatório (abaixo), é um mercado em expansão.
A Arco Educação, que recentemente adquiriu os sistemas de ensino COC e Dom Bosco, ao abrir capital na bolsa de Nova Iorque, foi avaliada em 15 vezes seu faturamento. Outro grande “fornecedor” de educação no Brasil, a Ser Educacional, teve um lucro acumulado em 2020 de 21% a mais que no ano anterior. É significativo se levarmos em consideração que as principais concorrentes sofreram perdas substanciais durante a pandemia do novo coronavírus – a Cogna, por exemplo, fechou o quarto semestre de 2020 com um prejuízo consolidado de cerca de R$ 4 bilhões. Na avaliação de Jânio Diniz, CEO da Ser Educacional, os investimentos em startups de tecnologia educacional para “capilarizar” soluções e produtos digitais está sendo um ponto de ancoragem importante no desenvolvimento dos negócios. A empresa, que teve um acréscimo de 71% no ensino à distância e já alcança 54 mil estudantes, profetiza o fim do ensino presencial “puro”.
Na trilha do sucesso para o mercado educacional, cursos customizados, com diminuição do tempo a ser dedicado ao diploma, dão o sentido de para onde se caminha. A “educação digital” abriu uma porta enorme para os agentes privados ocuparem um espaço precarizado pela falta de políticas públicas no Brasil. Nesse âmbito, nem chegamos a tratar de tecnologia de ponta. Escolas públicas sem banheiro e sem tratamento de esgoto ainda ocupam espaço no Censo Escolar da Educação Básica. E a internet de banda larga, essencial para quaisquer propostas de hibridização da aprendizagem, não oferece opções homogêneas às regiões brasileiras. Considerando que as escolas particulares acomodam menos de 20% dos estudantes matriculados na educação básica do país, o déficit de investimentos públicos por parte do Estado em educação mantém a enorme porta aberta para a ampliação do setor privado.
A pandemia é a cereja do bolo. Dela se depreende que o híbrido é o novo normal em educação. Em termos de mercado, esta direção vem sendo dada muito antes. O ensino à distância virou modelo de negócios por aqui e oferece concorrência à necessária socialização e organização da vida coletiva. As decisões políticas orientam as determinações econômicas, ao mesmo tempo em que também se orientam destas. É como uma serpente mordendo o próprio rabo. Sem alternativas, os professores, antes protagonistas nos rumos a serem tomados pela educação, veem degradar suas condições de atuação. A aprendizagem híbrida exige um preço alto de quem precisa estar presente física e virtualmente nos ambientes escolarizados, sejam públicos ou privados.
Estudos na área de psicologia alertam para os inúmeros problemas causados por esse novo normal na educação. Para os professores, a sensação de sobrecarga e a frustração diante das incertezas quanto à eficácia no aprendizado e ao engajamento dos estudantes são motivo de preocupação. A preparação de conteúdos novos e adaptados às ferramentas de ensino remoto, a presença por longas horas em frente a tela de um computador e a necessidade de comunicação constante via videoconferências dão uma ideia de tempo na qual as atividades, antes parte de uma rotina escolar, nunca cessam. As salas de aula estão em casa e o tempo livre é um convite a permanecer indefinidamente no planejamento da aprendizagem. Um quadro já exaustivo antes da pandemia, como revela Marilda Facci, professora de psicologia e pesquisadora da Universidade Estadual de Maringá. Em suas investigações, entre 250 professores entrevistados, 45% já usavam algum tipo de medicamento para conter a ansiedade e a depressão.
Os sinais do presente parecem claros: mercado em alta e investidores ávidos por transformar a oportunidade em lucro, deslocamento cada vez mais consolidado dos investimentos do setor público para o privado, interfaces cada vez mais complexas na condução dos processos educativos, atuação docente degradada pelas condições precárias de ensino ou pela ansiedade em dar conta de tantos aspectos novos na rotina escolar. O novo normal pós-pandêmico na educação tende a ser híbrido e ainda mais digital; tende a ser robotizado e ainda mais autônomo na condução da aprendizagem; tende a ser exponencialmente escalável e capilarizado; tende a oferecer “mais por menos”, com a promessa de que os novos mestres nunca dormem. O híbrido nesse novo normal tende a ser um simbionte que toma o corpo humano para livrá-lo das limitações físicas e mentais, das enfermidades mundanas inscritas no trabalho contemporâneo e da necessidade de excessivo esforço nas descobertas pelo conhecimento.
Tendências, contudo, dependem de como se resiste a elas. Ou de como as conduzimos.
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