Há quase 10 anos Zygmunt Bauman falava ao Fronteiras do Pensamento sobre sua obra. Um trecho da entrevista interessa como ponto de partida sobre a ideia de liberdade:

Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então, você precisa dos dois. (…) Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco da sua liberdade. Não há outra maneira. Cada vez que você tem mais liberdade, você entrega parte da sua segurança.

O paradoxo é entendido pelo pensador polonês como uma utopia. Inalcançável, mas motivadora. No pêndulo entre a liberdade e a segurança estaria a resposta para uma vida coletiva mais feliz. O problema é que esse pêndulo se mantém em constante movimento. Bauman cita O mal-estar da civilização, de Freud, como um tributo à ideia de que o início do Século XX estava marcado pela entrega excessiva de liberdade em prol da segurança. O pêndulo agora estaria no outro extremo. Talvez estejamos entregando excessivamente nossa segurança em prol da liberdade.

Entrevista do sociólogo polonês postada em 10 de agosto de 2011

Entre as percepções de Freud e de Bauman, uma Era se interpõe. O início do século passado vivia uma ruptura no campo da Comunicação que impactou a percepção de tempo e espaço. Vozes ganharam vida sem a necessidade de um corpo e um lugar de alocação. Passaram a vagar pelo espaço, disponíveis a quaisquer ouvidos dispostos à escuta ativa de um dispositivo que carregava em si mesmo a utopia de uma aldeia global. O rádio era a expressão de um mundo novo, conectado por uma vocalidade múltipla e ubíqua. Em termos políticos, a oportunidade de as ideias alcançarem o infinito foram limitadas por contingências econômicas de produção e circulação. Os dispositivos tornaram-se móveis e individualizados – livres portanto – mas o conteúdo que faziam circular tinha vozes controladas, seja pelo Estado ou pelo Mercado.

Já o Século XXI nasce sobre distopias quanto ao futuro. A internet intensificou a ubiquidade e dissolveu a vocalidade. Na época do rádio, se podia não conhecer o interlocutor, mas sua voz era como um índice delimitando a programação de conteúdos. O rádio institucionalizou a voz. A internet, ao contrário, a libertou de tal modo que não se tem mais certeza a respeito de sua fonte, tampouco de suas intenções. Uma informação, por menos relevante que seja, não tem mais um dono, alguém que se responsabilize por consequências decorrentes das inverdades ou deturpações que carregue ao circular. Além disso, os dispositivos pelos quais a internet se materializa são muitos, englobam, inclusive, o precursor da ubiquidade imputada a ela. O rádio abriu caminho para a consolidação da Comunicação em massa. A internet, para a personalização do consumo e da produção de informações.

Liberdade de expressão ou segurança de informação?

Poderíamos fazer uma analogia bem contemporânea do paradoxo descrito por Zygmunt Bauman. Ao longo do Século XX, as lutas por liberdade de pensamento e de manifestação acompanharam os emblemáticos conflitos que marcaram as tentativas de dominação política pela força e pela repressão. As conquistas foram tão caras que, hoje, quem pagou por elas talvez não aprecie o legado que deixaram. A liberdade de pensamento e de manifestação não mais representa projetos de vida coletivos e de bem-estar social. Enquanto direito, o exercício de ser livre encontra correspondência nas perspectivas individuais e na incivilidade de não se dar ouvidos ao contraditório. Na liberdade de expressão de agora cabe a fala, qualquer que seja, sem a necessidade de escuta. Nem mesmo da própria voz.

No esteio das lutas por liberdade de pensamento e manifestação, a imprensa instituiu-se como porta voz da verdade factual. Hannah Arendt alertava que as verdades de fato incômodas, quando toleradas em países livres, são “transformadas em opiniões” como forma de amenizar o impacto das narrativas que as sustentam. É como se, nesses casos, a verdade encontrasse subsídio nas crenças e não na história. A imprensa como instituição alocou-se nesse lugar desconfortável de fazer ver o que a mentira organizada esconde. É bom lembrar que Arendt é mais contemporânea de Freud que de Bauman, no sentido do paradoxo entre liberdade e segurança. E a imprensa, no cenário de lutas por liberdade, representa a segurança de que a verdade precisa corresponder aos fatos, ser fiel aos acontecimentos.

Claro que o papel da imprensa não mudou. O que mudou foi o sistema de crenças que sustenta o conceito de verdade. É como se a liberdade de pensamento e manifestação não dependesse mais de instituições, não precisasse mais ser “guardada” por metodologias de apuração e confrontação com os acontecimentos e suas versões possíveis. A liberdade de pensamento e manifestação – corolário da liberdade de expressão e, por consequência, de imprensa – encontra na ubiquidade de vozes sem corpos nem lugar, de falas inscritas exclusivamente em crenças e de sentidos obscuros a oportunidade para situar a dúvida como política conspiratória e não mais como propulsora das jornadas em busca de verdades. É possível que, no campo da Comunicação, tenhamos entregado excessivamente nossa segurança em nome da liberdade.

Celebrar o Dia Internacional de Liberdade de Imprensa pressupõe resistir à ideia de que ser livre significa se despir de corpo e de alma na construção de narrativas sobre nosso cotidiano. Qualquer voz precisa de um ente que a acomode e uma intenção clara sobre o destino do que diz. O direito de expressão se consolida quando qualquer voz pode usá-lo especialmente para enfatizar contradições. É um tipo de liberdade que sustenta a segurança de que todas as narrativas sobre nossa realidade têm aceitação, desde que referenciadas por argumentos factíveis. A personalização do consumo e da produção de informações fez eclodir o pensamento desarmado e acrítico como manifestação cultural. É a expressão do retrocesso cognitivo e intelectual que a própria imprensa tem ajudado a sustentar. É ela, a imprensa, que precisa se libertar dos enquadramentos que limitam a realidade e a representação social.

Como expressa a jornalista Catalina Albeanu, “é hora de valorizar a escuta como um ato de jornalismo”. Não há imprensa sem liberdades, tanto quanto não há segurança de informação sem uma escuta ativa capaz de compreender nosso tempo pela dissonância das versões relevantes a respeito dele.

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