Em Itapipoca, no Ceará, 26 dos cerca de 130 mil habitantes estimados pelo IBGE foram “adotados” por uma professora de 38 anos, especializada em educação inclusiva. Noadias Novaes leva a escola pelo interior do sertão cearense, de pé ou de bicicleta, em busca de seus alunos com deficiência, tão distantes da tecnologia quanto já estavam da aprendizagem. A pandemia foi a motivação e as condições criadas pela professora estimularam outras crianças e adultos “sem deficiência” a se juntar ao grupo. As aulas são dadas na calçada, em respeito às medidas sanitárias, com materiais autorais e um misto de recursos próprios com doações da escola municipal em que Noadias leciona.
Apoiada também por um microbiologista, uma psicóloga, uma enfermeira e um radialista, a professora planeja suas atividades de ensino pensando nos protocolos de saúde, inclusive a mental, e conta com um tímido mas eficiente sistema de comunicação através de uma rádio local. A imagem de heroína começa a reverberar pelos veículos de imprensa nos quais Noadias teve sua história registrada[1]Professora vai a pé ou de bicicleta dar aula para alunos com deficiência na zona rural de Itapipoca (Diário do Nordeste); Professora pedala pelo sertão do Ceará com ‘educação … Continue reading. A despeito do importante papel que a professora cumpre em uma comunidade carente de afeto e de políticas públicas, ela personifica, de forma nada heroica, a deficiência do Estado na solução de problemas crônicos no cenário educacional brasileiro, mesmo em centros urbanos mais “desenvolvidos”. O sertão cearense guarda características invisíveis para quem estuda nos grandes centros do país. Mas as periferias estão repletas de situações para as quais muitas Noadias seriam necessárias.
Produzido pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária e realizado pela Unicef Brasil, o estudo Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – Um alerta sobre os impactos da pandemia de Covid-19 no Brasil (abaixo) alerta para o fato de que as desigualdades na formação dos estudantes brasileiros de 4 a 17 anos não diminuíram significativamente, mesmo com o lento avanço no número de matrículas até 2019. Entre os 4 e 5 anos, segundo o IBGE, 384 mil crianças já estavam fora da escola antes da crise sanitária provocada pela pandemia. E entre 15 e 17 anos, 630 mil. Isso sem contar os que já se formaram no Ensino Médio mas não continuaram os estudos. A Região Nordeste, onde Noadias atua, é a que apresenta números absolutos mais negativos. Em termos gerais no país, os pardos com renda familiar per capita de até meio salário mínimo, em sua maioria meninos, dominam as estatísticas.
Mais relevante, o estudo mostra ainda que, entre os adolescentes de 11 a 17 anos fora da escola, um terço diz não ter interesse em estudar. É um indício de que é pouco provável que a escola tenha algo a lhes oferecer em termos de futuro. Isso antes de a pandemia aumentar as incertezas quanto à educação por impor a aprendizagem remota no cotidiano escolar. São, portanto, remotas as possibilidades de encantamento pela educação quando a ausência de políticas públicas é tão gritante. O termo “remoto”, nesse caso, está muito mais associado à distância de uma efetiva aprendizagem do que ao processo de ensino mediado por tecnologias “inovadoras” e que “aproximam” as pessoas distantes geograficamente. Quer dizer: a aprendizagem em boa parte do país já era remota mesmo antes de se usar os recursos tecnológicos como paliativo para superar a impossibilidade da presença física na escola.
Estudo produzido pelo CENPEC Educação e realizado pela UNICEF
Diante da ausência do Estado como gerador de oportunidades, especialmente agora, a educação, que já sofria para sustentar a baixa qualidade de aprendizagem, perde também em quantidade. Com um corte orçamentário recorde[2] Desde 2010 a educação perdeu R$2,6 bolhões em orçamento. O deste ano é o menor da década, muito pela inoperância do Ministério da Educação em usar recursos disponíveis no ano passado, o governo transforma em principal política pública na área o reconhecimento da educação domiciliar como modalidade no Brasil. Isso no ensino básico. Já no superior, o projeto de facilitar a entrada de investidores e “desburocratizar” os processos avaliativos[3] Em reunião com representantes do setor privado no ensino superior, o ministro Milton Ribeiro afirmou que é prioridade a “simplificação” dos processos regulatórios, tanto para quem quer entrar nesse “mercado” quanto para quem já está nele, entra na pauta.
Foquemos aqui na educação básica. No final de maio, o Ministério da Educação lançou a Cartilha Educação Domiciliar: um Direito Humano tanto dos pais quanto dos filhos (abaixo). A base da peça – mais propaganda do que esclarecimento – é o direito e a liberdade das famílias na escolha de como educar os filhos. O “documento” traz números, referências e exemplos, todos perfeitamente cabíveis dentro da escola. Mas é a negação de si mesmo quando enfatiza direitos que são os de todos:
“educação de qualidade, visando seu [“dos filhos”] desenvolvimento pessoal, preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho e para as demais áreas da vida”.
Os sucessivos projetos e adaptações sobre o tema no legislativo levam em conta o “direito” reconhecido em mais de 60 países e tentam, de algum modo, inscrever a “liberdade” da escolha familiar nos critérios avaliativos a que todas as instituições de ensino estão submetidas no país. Critérios que o Ministério da Educação pretende amenizar na regulação do ensino superior, por exemplo. Em debate, de fato, deveria estar o esforço do governo na solução para o déficit de aprendizagem na escola, identificado por estudos durante a imposição do isolamento das crianças e jovens por conta da pandemia. O foco na educação domiciliar neste momento só atende a grupos fundamentalistas e ultraconservadores que veem na escola uma degradação moral conveniente para a ascensão dos valores retrógrados que tais grupos sustentam para controlar pessoas sem senso crítico.
Cartilha sobre educação domiciliar lançada pelo MEC no final de maio
Os mais de 60 países que reconhecem a educação domiciliar e são usados como referência (apenas numérica, diga-se) na cartilha publicada pelo Ministério da Educação pertencem à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Instituição multilateral que congrega regiões economicamente “desenvolvidas”, a OCDE faz periodicamente uma série de estudos sobre o potencial da educação. O Programa Internacional de Avaliação de Alunos serve como base de dados para muitos desses estudos. A cada três anos, estudantes de 15 anos residentes nas regiões pertencentes à OCDE são submetidos aos testes de Leitura, Matemática e Ciências. Os resultados do PISA são transformados em um ranking no qual se mede o desempenho de cada região econômica nas três dimensões.
Justamente o senso crítico foi identificado como ausente na absoluta maioria dos estudantes brasileiros que participaram do PISA em 2018. Quase sete de cada dez (67%) não conseguem diferenciar fatos de opiniões, segundo estudo mais recente da OCDE[4] Acesse aqui o relatório, em inglês . Leitores do século 21: Desenvolvendo habilidades de alfabetização em um mundo digital mostra que essa incapacidade de leitura crítica tem relação direta com a disseminação de todo tipo de informação pelos meios digitais. No caso do Brasil, como mostra o relatório, houve crescimento quantitativo no acesso a dispositivos e à internet em termos gerais, mas as desigualdades econômicas impactam diretamente nos estudantes mais pobres e de escolas públicas, que dependem exclusivamente de recursos do Estado. Enquanto nove de cada dez dos estudantes de escolas “mais favorecidas” (leia-se privadas em sua absoluta maioria) tinham acesso à internet em 2018, apenas três de cada dez contavam com o mesmo recurso em escolas “menos favorecidas” (públicas).
Gráficos elaborados pelo próprio governo brasileiro (abaixo) sobre os resultados no PISA desde a primeira edição em 2000 mostram que a média da OCDE em Leitura também caiu nas últimas duas edições. Esse pode ser um indício de que o senso crítico esteja arrefecendo no mundo inteiro. Ironicamente, o desempenho brasileiro tem justamente na Leitura uma média levemente mais alta, equiparando-se a de 2009, quando também o PISA destacou a avaliação de Leitura. Como se sabe, o programa destaca uma das dimensões a cada três anos. Nove anos depois de conseguir sua média mais alta, o país repetiu o desempenho. Ressalte-se o hiato significativo entre as médias brasileiras e a média mundial. Mas a série histórica brasileira nas três dimensões revela uma sensível melhora e uma certa estabilidade no desempenho dos estudantes ao longo de duas décadas. Leitura, inclusive, tem sido a dimensão em que os brasileiros têm se saído melhor, o que não deixa de ser irônico.
Resultados do PISA – série histórica
Falta de engajamento no ensino remoto e evasão durante a pandemia aprofundam ainda mais a crise de aprendizagem no país. O pesquisador e economista Ricardo Paes de Barros coordenou a pesquisa Perda de Aprendizagem na Pandemia publicada pelo Insper e pelo Instituto Unibanco[5] Mais informações aqui e aqui , cujo resultado mostra uma defasagem de dez pontos na escala do Sistema de Avaliação da Educação Básica em matemática e de nove pontos em português. A perda de proficiência é calculada a partir de diferentes fontes (nacionais e internacionais) e analisada sob o ponto de vista tanto da mensuração da aprendizagem quanto do impacto econômico. O trabalho concentra a investigação especialmente nos estudantes da 2o ano do Ensino Médio, que em 2021 terminam sua trajetória na educação básica.
Em síntese, os dados indicam que o ensino remoto não dá conta de sustentar o processo de aprendizagem mínimo, já não muito significativo no Brasil. A continuidade do modelo de ensino remoto como única alternativa ao modelo tradicional deve elevar ainda mais o déficit de aprendizagem e comprometer economicamente o futuro de gerações que estão concluindo a educação básica. Ressalte-se que o estudo analisa escolas públicas, as quais concentram hoje cerca de 80% das matrículas no país. Estamos falando de cerca de 35 milhões de estudantes. A perda de aprendizagem verificada agora potencializa, segundo o estudo, uma perda futura de quase o dobro do valor social das mortes na pandemia em 2020, estimado em R$ 350 bilhões. A diminuição de renda coletiva no futuro, avaliada em R$ 700 bilhões, pode chegar a R$ 1,5 trilhão no caso de não haver investimentos agora.
Como solução, o economista que coordena o estudo propõe a adoção de modelos híbridos de ensino e de medidas para, por um lado, promover o reforço e a recuperação dos conteúdos perdidos; por outro, buscar mais engajamento dos estudantes. Não é uma fórmula fácil. Com a negligência do governo na condução de medidas de proteção sanitária e de recursos para diminuir os impactos da Covid-19 em todas as instâncias da vida coletiva, as escolas ainda estão fadadas a manter protocolos rígidos de segurança. Isso implica evitar o ensino presencial ao máximo. Além disso, os currículos nas escolas públicas carecem de estrutura para sedimentar alternativas capazes de envolver os estudantes fora da rotina formal de aula. Sem contar as dificuldades socioculturais e econômicas nas quais a maioria desses estudantes estão mergulhados.
Estudo publicado pelo Insper e pelo Instituto Unibanco
A ausência da escola na vida de crianças e jovens no Brasil é a questão central no debate sobre as chances remotas de aprendizagem. Isso a professora Noadias Novaes mostra muito bem. A educação brasileira precisa descobrir, e com uma certa urgência, um modo de fazer a escola chegar à população que dela necessita. Há um esforço mínimo do Estado para sustentar a presença de estudantes no ambiente escolar. Um esforço ainda menor do atual governo, diga-se. O trabalho itinerante de Noadias ganhou o nome sugestivo de “educação delivery” em uma das reportagens, caracterização tosca e bastante comercial de uma ideia que precisa ganhar amplitude. Certamente, a atuação de Noadias está muito mais próxima da educação domiciliar do que propõe a cartilha-propaganda do Ministério da Educação. Essa sim uma espécie de “pauta delivery” para preencher uma agenda vazia de projetos relevantes.
É de se destacar a falta de perspectiva historicamente consolidada por um projeto de educação altamente elitista. Os avanços para alcançar populações excluídas trataram de permitir o acesso, sem a promoção efetiva e equitativa da qualidade nos processos de aprendizagem na educação básica. Crianças e jovens espalhados pelas periferias do cenário da educação brasileira estão distantes de reconhecer possibilidades quanto ao próprio futuro porque a escola não vai até eles. O Estado tem se evadido do compromisso de transformar pela educação. A evasão dos estudantes contabilizada até aqui é só um reflexo desse desleixo.
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