
De nada adiantam as discussões. Quando o assunto é tratamento precoce para a Covid-19, as crenças se sobrepõem aos fatos. Adotado como política pública pelo governo Jair Bolsonaro, o tal tratamento envolve a distribuição de medicamentos cuja eficácia para amenizar os efeitos da pandemia não tem qualquer comprovação consistente e aceita pela Ciência. Em um cenário de extrema polarização política e desinformação deliberada, o debate se reduz a versões que ora beiram o charlatanismo ora a disputa por uma hegemonia discursiva para justificar a falta de medidas que levaram o Brasil a 13% das mortes no mundo, mesmo representando menos de 3% do total da população no planeta.
A Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que investiga a negligência do Governo Federal na pandemia foi palco, nesta semana, de dois depoimentos que evidenciam a relação articulada entre desinformação e uso de medidas que em nada ajudam a controlar o vírus. Primeiro, o Coronel Helcio Bruno, responsável pela organização sem fins lucrativos Instituto Força Brasil, foi confrontado algumas vezes com publicações de seu site a respeito de informações falsas e pejorativas sobre a CPI, a Covid-19 e a atuação das instituições públicas diante de ameaças à democracia. Depois, o diretor executivo da Vitamedic, Jailton Batista, deixou claro o lobby político e os lucros expressivos da farmacêutica com a venda de ivermectina para tratamento de Covid, sem aplicar um tostão em pesquisas de comprovação de eficácia do medicamento.
Não por acaso, a CPI deve pedir o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro por charlatanismo, curandeirismo e propaganda enganosa. Bolsonaro tem servido como garoto-propaganda do tratamento precoce em canais privados e nos sites “conservadores” mantidos por apoiadores. Boa parte dos veículos é apócrifo e não existem informações sobre as formas de financiamento dos serviços, uma vez que a maioria se descreve como organização em fins lucrativos. Ao mesmo tempo, essas mesmas organizações orbitam o eixo político do governo e estão entranhadas nas esferas decisórias de políticas públicas negligentes ou influenciadas por doutrinas ideológicas fundamentalistas. Fato é que existe um farto conjunto de evidências sobre a prescrição indevida dos medicamentos por um agente público desqualificado.
Sem ilusões. O discurso sobre o tratamento precoce não é tão ingênuo quanto se supõe ou quanto a dissonância cognitiva de Bolsonaro faz parecer. Pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas mostram que a articulação dos grupos de direita conservadora nas mídias sociais reivindicam cientificidade para sobrepor a pauta do tratamento precoce às de medidas sanitárias e aplicação de vacina com mais eficiência. O estudo, desenvolvido pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas dentro do projeto Digitalização e Democracia no Brasil, ajuda a compreender os pontos de vista defendidos pela ala governista da CPI e que renderam ao senador Luis Carlos Henze, na oitiva desta quarta-feira, uma repreensão por uso descontextualizado de informações.
(Pseudo)ciência e esfera pública: reivindicações científicas sobre Covid-19 no Twitter foi divulgado no início de agosto
Entre 1o de janeiro e 31 de maio deste ano, os pesquisadores debruçaram-se sobre mas de 42 mil links e 3,3 milhões de tuítes para compreender quem reivindica a Ciência nos debates sobre a Covid-19 e como se dá essa relação. Os resultados mostram o quão articulados são os “conservadores de direita” próximos ao presidente Bolsonaro e como o discurso científico é manipulado para equiparar conclusões sobre o tratamento precoce às relacionadas a medidas sanitárias e processos de vacinação. O estudo da FGV, divulgado no início de agosto e intitulado (Pseudo)ciência e esfera pública: reivindicações científicas sobre Covid-19 no Twitter, faz as seguintes ponderações:
- Posicionamentos contrários e favoráveis ao uso de medicamentos para tratamento de Covid-19 pautaram o debate, em detrimento de outros temas mais relevantes;
- Perfis e grupos alinhados ao Governo Federal predominaram em presença e engajamento;
- Esses perfis e grupos recorrem a argumentos pretensamente científicos para validar os pontos de vista controversos e refutados pela comunidade científica;
- Há uma predominância significativa dos veículos hiperpartidarizados, o que mostra a politização das temáticas;
- Os links de periódicos mobilizados são caracteristicamente pseudocientíficos, frequentemente desmentidos por veículos de checagem e institutos científicos reconhecidos, ou usados sem contexto ou nexo com os pressupostos da Ciência;
- Os sites utilizados como referência são, todos, internacionais e não passam pelo filtro da cobertura jornalística especializada ou pelo crivo da comunidade científica.
- Há um caráter endógeno na circulação de informações a respeito do tratamento precoce, especialmente nos grupos de direita e de esquerda, e que revela o isolamento das fontes e uma forte restrição quanto a argumentos mais diversificados.
É relevante ponderar também que os links patrocinados nos perfis e grupos de direita tendem a ficar mais tempo em exposição, cerca de duas vezes e meia a mais que os dos demais grupos. Além disso, cientistas, profissionais de saúde e jornalistas tendem a ficar mais isolados no debate, uma vez que sustentam argumentos baseados em evidências e mais distantes de crenças políticas ou ideológicas. Vale o aprofundamento da leitura para compreender o cenário.
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