
Recentes afirmações do presidente da República sobre a Covid-19 no Brasil evidenciam mentiras e deturpam os números de forma grosseira para justificar decisões sem base sobre como lidar com a pandemia
Jair Bolsonaro em live do dia 26/08
Jair Bolsonaro despreza números e há pelo menos duas razões para isso: 1) sem dados consistentes qualquer afirmação ganha sentido e 2) interpretar um conjunto de números para inferir algo sobre a realidade não é para qualquer um. O presidente da República só os usa quando, supostamente, confirmam o viés de limitação cognitiva característico de seu governo. Por exemplo, interessa afirmar que o Brasil já tem mais adultos vacinados contra a Covid-19 do que os Estados Unidos, sem dizer que isso não significa imunização. Foi o que fez na live semanal de 26 de agosto, dentre tantas afirmações grotescas e sem fundamento. Ao lado do Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, Bolsonaro deturpou as evidências que realmente importam.
Os dados mostram que o Brasil é um dos países com maior disparidade na aplicação das doses da vacina. Ontem (27), o Ministério da Saúde contabilizava 127,8 milhões de doses aplicadas, incluindo as que ainda dependem de confirmação. Os imunizados, que tomaram a dose única ou a segunda dose, são apenas 58,5 milhões (ver números exatos no gráfico abaixo). Não chegamos a um terço da população protegida contra a pandemia, nem à imunização da metade dos que já tomaram a primeira dose. Para o efetivo combate à Covid-19 conta a imunidade completa. Os números absolutos de doses aplicadas no país, como destaca o presidente em conveniente interpretação dos índices sobre a vacinação, precisam de contexto.

Quando os dados são relativizados em termos proporcionais, o Brasil fica ainda mais longe dos países que efetivamente estão à frente na cobertura vacinal. Nesses indicadores, nem os Estados Unidos são referência. De acordo com a Universidade Johns Hopkins, o Brasil tinha aplicado até 26 de agosto 87,5 doses por 100 habitantes (comparativo abaixo). Aparentemente, uma proporção mais significativa do que realmente é. Para se ter uma ideia, o Brasil precisaria de pelo menos 316 milhões de doses aplicadas para imunizar toda a população adulta, segundo o próprio Ministério da Saúde. E chegamos a apenas 76% (240 milhões) da distribuição de doses necessárias para isso. Na América do Sul, nosso vizinho Uruguai já tem uma taxa de 155,9 doses aplicadas por 100 habitantes, quase o dobro da cobertura no Brasil.

É preciso levar em conta ainda outras questões. Nos Estados Unidos há doses suficientes para toda a população. Sabe-se que lá boa parte das pessoas escolheram não se imunizar. No Brasil, pesquisa realizada pelo PoderData diz que nove de cada dez brasileiros querem se vacinar. Isso inclui a esmagadora maioria de quem apoia o presidente Bolsonaro. Portanto, o ritmo de vacinação no país diz respeito à negligência do governo na compra de imunizantes e à falta de coordenação do Ministério da Saúde na condução de um plano nacional eficiente. Governadores e prefeitos ainda não têm uma coordenação que os oriente na condução do combate à pandemia, passados quase uma ano e meio de gestão da crise sanitária.
Dois dias antes da declaração na tradicional live, o presidente da República fez outras declarações sem quaisquer bases científicas ou números aferíveis. Em uma entrevista para o Canal Rural usou informações inverídicas para dizer que o trabalho é a melhor maneira de superar a Covid-19 porque um “corpo são” garante mais imunidade. Bolsonaro alega, “estatisticamente”, que a obesidade e o pavor são as maiores causas de morte pela doença, sem dizer de onde tirou os dados que reforçam a afirmação, claramente relacionada à intenção de incitar as pessoas a retomarem suas atividades para evitar os dois “sintomas” de maior risco e salvar a economia.
Jair Bolsonaro em entrevista ao Canal Rural do dia 24/08
O presidente da República fala sobre o que não conhece. Primeiro é importante salientar que a Ciência se oferece o tempo todo à contrapontos, desde que embasados em evidências sobre o que se está discutindo. Não se trata, portanto, de dizer que o discurso científico é a verdade absoluta. Mas a Ciência também não aceita afirmações levianas como as de Bolsonaro. O presidente deveria, por exemplo, estar mais preocupado com os estudos realizados nos Estados Unidos, alertando para o fato de que 99% das mortes e 97% dos casos de internação são de não vacinados, como informaram as autoridades do Centro de Controle de Doenças estadunidense, o CDC.
Também é fato que quase 20% das mortes por Covid-19 podem estar sendo causadas por anticorpos produzidos por pessoas com sistema imunológico “defeituoso”, que agrava a infecção ao invés de combatê-la. Entre os idosos com mais de 80 anos, estima-se que 6% apresentem este quadro. É possível também que parte das reinfecções de pessoas já vacinadas se deva a este fator. Os resultados precisam de aprofundamento, mas o estudo clínico apresenta conclusões com base na análise de 3,5 mil pacientes, o que representa uma amostragem bastante robusta em termos estatísticos.
As constantes comparações com os Estados Unidos também não levam em conta que, por lá, os casos começam a subir novamente. Escolas estão adotando quarentena e há regiões, especialmente as governadas por republicanos herdeiros do “trumpismo”, nas quais os hospitais enfrentam novos surtos de infecção grave. A variante Delta, mais contagiosa, representa 33% dos casos no Brasil (gráfico abaixo), de acordo com a Universidade Johns Hopkins e já é indicador de surtos em boa parte dos países, mesmo os com maior cobertura vacinal. Os especialistas estão preocupados com a perda de eficiência das vacinas na proteção da nova variante. É claro que as pessoas continuam protegidas, mas a variante dá sinais de que é mais resistente, se comparada a suas versões anteriores.

Por cerca de quatro meses, o CDC acompanhou mais de quatro mil trabalhadores da linha de frente no combate à pandemia, 83% deles vacinados, justamente no período em que a variante Delta tornou-se dominante. As conclusões apontam que as taxas de imunidade das vacinas Pfizer e Moderna, as predominantes nos Estados Unidos, caíram em cerca de 25 pontos percentuais. Os próprios autores do estudo recomendam cuidado na análise porque existem outras variáveis que podem ter contribuído para os resultados, como a perspectiva de que a imunidade caia com o tempo em todos os cenários. De qualquer modo, os indícios levam a crer que não seja o momento de relaxar as medidas sanitárias de proteção. Distanciamento físico e uso de máscaras estão retornando ao convívio dos estadunidenses, ou por determinação legal ou pela exigência de setores da economia preocupados com o cenário.
No mesmo dia em que Jair Bolsonaro fazia as afirmações levianas (24/08), encadeadas superficialmente e desprovidas de coesão, o mesmo CDC publicava outro estudo indicando que pessoas não vacinadas têm 29 vezes mais chances de ser hospitalizadas e 5 vezes mais riscos de se infectar com a Covid-19 do que as vacinadas. É um dado relevante, uma vez que espalham-se desinformações a respeito da eficácia dos imunizantes adotados até aqui. Por menos que a vacina proteja (e ela protege!), quem já está imunizado corre muito menos riscos. Por isso a preocupação da Organização Mundial de Saúde com a baixa quantidade de doses administradas em países de baixa renda (1,6% até 26/08).

Como as afirmações de representantes do Governo Federal, via de regra, não apresentam evidências nem fontes a partir das quais a realidade possa ser confrontada, fica difícil saber de onde o presidente tirou a ideia de que as mortes por Covid-19 têm como fatores principais a obesidade em primeiro lugar e o “pavor” em segundo. No caso das pessoas “apavoradas”, o que se tem como evidência são consequências provocadas pela pandemia. O pavor ou o medo transformado em fobia tem sido diagnosticado em decorrência da infecção viral. Também há a preocupação de que o medo excessivo diante dos riscos provocados pela pandemia agrave outras doenças sérias, como a hipertensão, ou prejudique significativamente a saúde mental. Mas não dá para dizer que o pavor seja sintoma de morte por Covid, especialmente nas proporções descritas.
Quanto à obesidade, pode ser que Jair Bolsonaro tenha se baseado em um estudo no qual a Organização Mundial da Saúde, em parceria com a Universidade Johns Hopkins, atestou a propensão maior de mortes ou infecções graves em lugares com nível de obesidade mais alto. A proporção de mortes por Covid-19 em países com mais da metade da população obesa é de quase nove para cada dez óbitos. Contudo, usar esse dado de maneira genérica não condiz com o método usado na verificação nem com as condições que determinam os fatores de obesidade. No Brasil, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística reconhece que 20% da população é obesa, uma taxa bem abaixo do indicado pelos estudos da OMS.
Talvez Bolsonaro tenha se baseado na pesquisa da Fiocruz com a Rede CoVida, cujos resultados alertam para as taxas preocupantes de infecção e mortes por Covid-19 em pessoas obesas. Trata-se de um estudo comparativo em que a obesidade oferece mais riscos do que outras comorbidades. Quem está acima do peso, segundo a análise, tem 1,33 vezes mais chances de morrer por conta da infecção e 1,31 vezes de ser internado em Unidades de Terapia Intensiva para tratamento da doença quando comparado, por exemplo, aos que têm problemas cardíacos. São dados preocupantes, mas estão longe de confirmar que os obesos são os que mais morrem por Covid-19, pelo menos no contexto em que o presidente faz crer.
O Brasil não é exemplo na cobertura vacinal contra a Covid-19 e ainda não pode se dar ao luxo de voltar à vida sem o uso de medidas restritivas. Muito já se avançou no tratamento da doença e hoje o grau de conhecimento sobre o vírus justifica decisões que exigem cuidado. Principalmente com crenças sem fundamento e demonstrações de ignorância de líderes políticos e chefes de estado. No caso de Bolsonaro, as duas declarações dão mais subsídios para a CPI da Pandemia denunciar a gestão sanitária desastrosa, porque insensível ao drama no qual a “pátria amada” se afunda.
Hits: 6